António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

orelha direita apesar da minha mãe às vezes pegar num desperdício e a esfregar com
petróleo, tinha que se deixar uma noite lá fora porque o cheiro



  • Cavalinho cavalinho
    se pegava a tudo, até ao cesto da roupa, o meu avô a tossir

  • Raios partam o bicho
    dado que o pivete lhe incomodava os pulmões, os soldados formavam bicha diante
    das tendas com a senha numerada a lápis na mão

  • Ao fim de cinco minutos chegas aqui mesmo em pelo vestes-te cá fora e pronto
    pergunto-me se a minha filha se lembra dos meus joelhos, se calhar sim, se calhar
    não, quase de certeza esqueceu-os, agora volta e meia doem-me no inverno, estou
    muito bem a andar e uma das pernas falta-me, desaparece da tíbia para baixo e a seguir
    regressa mas mais fraca, a tremer, o meu filho preocupado

  • O que é isso?
    a minha filha indiferente, vai acontecer-te o mesmo descansa, espera uns aninhos e
    vês, infelizmente já cá não estou sentindo-me vingado quando avançares a mancar
    porque hás de ser velha também, metes mais graduação nas lentes para enfiar a linha
    na agulha a perguntares

  • Onde vai a tesoura?
    e ela na palma, tu a falares com uma bolhinha de cuspo em cada ângulo da boca e a
    gente mesmo que não queira a olhar as bolhinhas que se achatam e arredondam numa
    repugnância fascinada, ainda não vi o porco hoje mas continua a comer de certeza, o
    idiota, sem se lembrar da morte, em África ao sair para uma operação nem uma migalha
    de bucha me cabia nas gengivas de tal maneira as tripas se apertavam, se calhar a perdiz
    do meu avô não aparece por sentir o mesmo, bastava uma folha tremer para a gê três
    se apontar a ela, nervosa, o cabo atrás de mim

  • Cavalinho cavalinho
    a serenar-me

  • Ninguém faz emboscadas a cem metros do quartel meu alferes
    e eu com ganas de apertar o pescoço ao idiota

  • Cala-te
    um parvo a quem acertaram nos pulmões mais tarde, mostrando-me a palma
    vermelha, intrigado

  • Não sinto nada isto é sangue?
    e claro que é sangue, cretino, um bocadinho mais para a esquerda apanhava-te o
    coração e quinavas, só pela parvoíce dos cem metros não me importava de te ver num
    caixão, até me oferecia para comandar as salvas quando, pareceu-me que a minha filha
    um relance para mim mas desviou-se logo, te descerem à terra, os oficiais regressam de
    casaco de pau a Lisboa, as praças sepultam-se por lá, manda-se um graduado a casa dar
    a notícia e entregar um dinheirito, prometer

  • Quando houver lugar num barco trazem-no
    e ficavam junto à pista de aviação a engordar as minhocas, mal há aqui lugar para
    vivos, tudo ao monte aos encontrões nas ruas, quanto mais para mortos, o sargento que
    comandava as visitas às mulheres a sacudir uma tenda que oscilava

  • Um minuto e expulso-te daí a pontapé meu camelo

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