António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

com um enfermeiro a depositar uma gota, apesar de tudo é minha filha caramba, por
que carga de água não me liga nenhuma, de pomada antivenérea no dedo de cada um



  • Esfrega-te bem palerma não queres que ta cortem e passes o resto da vida a mijar
    de cócoras
    uma fila de magalas de indicador no ar a contemplarem um pingo de brilhozito
    amarelo enquanto o meu filho de cócoras no quintal com um sachito e um regador
    pequenos, um soldado que oferecia sempre o resto do prato aos cães vadios do arame
    raspando o alumínio com a faca, para o parceiro diante dele na fila

  • Tenho a certeza que não vou ser capaz
    a certificar-se, desiludido, nas calças

  • Bem me parecia
    percebiam-se as mulheres de camuflado por uma fresta na lona, as três morenas e a
    branca, quase albina, nuas no colchão a limparem-se durante os intervalos num pedaço
    rasgado de toalha, se a minha mulher ali estivesse de certeza que de camisa de rendas
    e não de olhos no teto como estas, fechados, o soldado que de certeza não ia ser capaz
    para um que se, a primeira perdiz do meu avô finalmente porque a cadela levantou as
    orelhas de nariz estendido, a minha filha quando lhe perguntei

  • Por que razão não me falas?
    a bater a cancela do quintal e a sumir-se na aldeia, alguns dos militares que deixavam
    a tenda compunham a farda e tentavam colocar-se de novo na fila

  • Cavalinho cavalinho
    ou negociavam a condução do próximo rebenta minas a troco de uma senha na bicha,
    a certa altura pareceu-me ver o meu pai no meio deles, esquecido das perdizes, com a
    cadela a farejar as barracas sem entender, a minha avó para o meu avô, desconfiada

  • Nem numa perdiz acertaste?
    e eu sem entender dado que o meu avô falecido imenso tempo antes da guerra,
    lembro-me dele na casa da aldeia sem conseguir falar, engasgado com as colheres de
    sopa que a minha avó lhe estendia e um olho, mais protuberante que o outro, a gritar
    por socorro em silêncio, onde quer que estivesse durante a noite sentia-o no escuro, de
    manta no colo, afundado na cadeira grande a mirar-me, de tempos a tempos a garganta
    dele

  • Tu
    disso tenho a certeza, a garganta dele um

  • Tu
    confuso que espevitava a cadela e deixava-me a olhar para dentro com a mesma
    intensidade e a mesma espécie de fúria, zangado com a manta, zangado com o seu
    destino, zangado com o meu pai a matar o porco por ele porque você já não manda nada
    senhor, nada de nada, deita-se quando o deitamos, levanta-se quando o levantamos,
    passa a tarde na horta dado que o colocam lá, não decide, não resolve, obedece, o
    relógio do seu colete no colete do meu pai, a cadela a caçar perdizes com ele, não
    consigo consoante a sua mulher a obedecer ao seu filho, não a si, a minha prima para
    mim

  • Não achas que parece zangado?

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