António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Alferes?
    não acreditando totalmente derivado à minha roupa por engomar e o botão do
    colarinho demasiado ao léu, lá lhe mostrei o cartão com a farda número dois enquanto
    alguns azulejos dos lavabos nos tombavam em torno e os empregados se ocupavam de
    um cliente de borco no chão, a farda número dois e o boné de pala que a mulher dos
    anéis, no gênero das senhoras de camuflado que nos visitaram no arame, examinou
    respeitosamente e me devolveu segurando-o com solenidade por uma pontinha tal
    como a minha mãe o papel da tropa, estendendo-mo sem me olhar

  • Isto é para ti
    e limpando-se no avental a seguir, no primeiro fim de semana em que me viu de
    uniforme recuou a bochecha quando tentei beijá-la, procurando quem eu era debaixo
    da boina a perguntar

  • És mesmo tu?
    quase sem mover a boca, quer dizer as palavras estavam lá, percebia-se que

  • És mesmo tu?
    mas não todas do mesmo tamanho nem colocadas por ordem, ao acaso, percebia-se
    que o indicador na cabeça dela a ordenar as letras, a enganar-se, a tirar uma vogal daqui
    para a colocar acolá de modo que o

  • És mesmo tu?
    demorado, torto, confuso, um filho de botas e cabeça rapada, com uma estrela de
    metal no ombro, que não parecia mais novo nem mais velho, parecia um estranho
    apenas, procurei um brinquedo antigo na arca porque talvez se eu com uma locomotiva
    de folha me reconhecesse ou o Pinóquio articulado a que faltava o braço esquerdo, ou
    seja tinha as orelhas e o resto, só lhe faltava o braço esquerdo, a que ataque em que
    quimbo lho terão arrancado, nunca dei por nenhum Pinóquio em Angola, não existiam
    coisas de criança na mata, automoveizinhos, berlindes, o urso de felpa que sorriu
    sempre até perder o recheio depois de lhe escapar quase todo pelas costas, pegava-se
    nele e o bicho pendurado, vazio, nem sequer se sentava, encostava-se às coisas e
    desistia da vida, o que a simples falta de algodão muda as pessoas, lembrei-me da minha
    avó quando tirava a dentadura postiça e tirava-a quase sempre para gritar melhor
    conosco numa zanga de bochechas chupadas feita de cuspo e ditongos que antes da sua
    fúria eu ignorava haverem, a minha mulher espantada

  • O alfabeto afinal é tão grande
    tão grande de fato e tu apenas quatro letras

  • Amor
    se usasses por exemplo mais algumas comigo talvez a nossa filha nascesse mais cedo
    e conversasse com a gente em lugar de evitar-nos calada, só desprezo e caretas, as luzes
    das traineiras de Luanda pela baía fora, os cotovelos das bielas para diante e para trás
    como cavalheiros com pressa marchando a suar à beirinha do rio fitando com o queixo,
    não com as pupilas, os pescadores à linha, com iscos de paciência, entre uma alcofa vazia
    e um banquinho de lona, um deles com um cachimbo com vocação de locomotiva
    mandando mensagens índias de fumo para a tribo em Almada, a mulher dos anéis para
    mim

  • Vim de Portugal há três anos

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