António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

quando começaram a mandar senhoras nos navios a fim de melhorarem os níveis de
ternura da tropa, tratada a penicilina quando se acompanhava de coceira ou de dores,
a mulher dos anéis escoltou-me até à pensão através de ruas estreitas vigiadas por cães
só mandíbulas e olhos severos a segurarem pelas trelas polícias militares, soprando uma
respiração feroz prestes a transformar-se em latidos quando se erguem sobre as patas
traseiras, os tropas, esses, matam todos os cabíris, todas as galinhas, todas as cabras,
todas as pessoas, o meu filho de pé, sozinho, abraçado a um pedaço de mandioca, os
estalos de língua de fogo, as chamas de um lado para o outro ao longo dos fios de
gasóleo, as cabeleiras doiradas, depois prateadas, depois cinzentas das árvores, depois
tombando em pedaços negros, depois poeira que qualquer aragem, não vento, qualquer
aragem leva, depois a polícia política poupando dois ou três prisioneiros magríssimos
empurrando-os à coronhada para os jipões, as pernas deles sem força, os braços fitas
pendentes, uma ou outra cabeça a mirar-nos não com os olhos, com a boca, a mulher
dos anéis incomodada pelos saltos dos sapatos



  • É muito longe ainda?
    continuando admirada comigo

  • Um alferes
    a receber o papel da minha mãe

  • Isto é para ti
    que amarrotou não sei como e me parecia molhado enquanto o meu pai se afogava
    cada vez mais nas notícias, a segredar numa espécie de sorriso incolor

  • Não vai ser muito difícil vais ver
    que tentava equilibrar-se, com o auxílio dos braços afastados a girarem, na corda
    bamba da boca, se alguma vez, por exemplo, a minha filha sorrisse, o que não acredito,
    julgo que qualquer coisa desse gênero, mantendo-se um segundo antes de sumir-se na
    pele, substituída logo por pupilas duras

  • Só queria ver-te adeus
    e cujo peso custava a aguentar no alto das bochechas, explica-me como fazes quando
    estás, por favor não deixes de comer porco, sozinha, depois da última luz apagada e o
    escuro, come o escuro também, maior dentro de nós que no quarto, com o passado em
    torno, tão confuso quanto a rua, alguém que nos pega ao colo e nos esquece, gente que
    não repara em nós, as cadeiras do futuro ocupadas por pessoas conversando umas com
    as outras sem nos verem, a mulher dos anéis, com os sapatos na mão

  • Depois daquela esquina diz você?
    bares a seguir a bares, um tiro não sei onde, a polícia militar a correr, falcões na serra
    da aldeia, tão tranquilos, come os falcões porco, a minha mulher a meio do jantar,
    apertando a cintura

  • Às vezes sinto um incômodo aqui e depois passa devo ter dado um jeito a um
    músculo
    e é bem possível que tenha dado um jeito a um músculo, sempre a endireitar-se e a
    curvar-se, quem não tem dores nas costas, há pessoas exageradas que à primeira
    picadinha pensam logo nos rins, andam de médico em médico a mudar de pomada
    insistindo

  • É lá dentro

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