19
Como toda a gente tenho mãe e pai, ou seja uma mãe a morrer de cancro no rim, o
médico alinhou radiografias contra uma placa de vidro fosco com lâmpadas atrás que
lhe iluminavam igualmente os dedos, o punho da camisa com um botão doirado e a
caneta na mão, a desenhar ovais em torno de manchas
- A Medicina não é uma ciência totalmente exata há surpresas
e um pai sentado à mesa na frente dela a olhá-la, rodeado de fantasmas que o
perseguiam sem descanso, viaturas militares a gingarem na picada chocalhando a tropa,
soldados que disparavam, árvores que o esfoliante secou, o comandante a mostrar aos
jornalistas vindos de Luanda uma coberta no armazém - Como podem verificar com honestidade não há sombra de napalm aqui
e por baixo da coberta parte de algumas bombas à vista e sobretudo aquele cheiro,
aquele cheiro, aldeias desfeitas, árvores queimadas, torresmos de cadáveres a que
faltavam pedaços, vários deles ardendo ainda, além da minha mãe e do meu pai tenho
um irmão preto que o meu pai trouxe criança de lá, depois dos tê seis se irem embora
deixando os quimbos em labaredas finais, o médico para nós, contente com os botões
de punho enquanto a minha mãe fazia tratamento noutra sala - A resistência humana é um mistério
o meu irmão que não se lembra quase nada de Angola com a cabeça, lembra-se, sem
o saber, com o resto do corpo, sobretudo as partes que faltavam no resto do corpo dos
outros, olhos que não viam por si mesmos, via a gente por eles, parecem cegos e não
são, parecem mortos e continuam, mesmo agora, debaixo da terra, a falar, há os que
fumam mutopa com a água borbulhando no interior das cabaças, há os que comem
grilos que se fritam num, o médico para nós a endireitar melhor o botão de punho - Talvez consigamos ajudá-la a viver mais uns tempos não sei
há os que comem grilos que se fritam num espeto, os que que roem a mandioca que
ainda não secou nas esteiras enquanto o médico falava em paciência e em coragem, ia-
se embora sem se despedir, só um botão de punho nos declarou - É a vida
uma emboscada é a vida, uma mina é a vida, uns óculos de cego, meus senhores, são
a vida, mais um fragmento do nariz somente, mais um fragmento de queixo que falta,
um dia destes a rua lá em baixo, cinco andares nem dão tempo de pensar, sente-se,
quando muito, uma frescura rápida e depois cessa-se de ser seja o que for e acabou-se,
um dos pilotos de tê seis, sentado na pista, riscando a terra com o dedo numa aflição de
criança - Não aguento mais isto não aguento mais isto
a afastar sombras com as palmas e carvões que se agitavam ainda, o que devia ter
sido uma mulher de cabelos em combustão, uma cara só dentes, nenhum traço, só
dentes, não trinta e dois, cem, duzentos, e não negros, vermelhos, que iam pingando,
pingando, cada dente uma labareda e a língua a tombar-lhe, uma espécie de verme roxo
que se tornava cinza, como podem verificar não há, as mentiras dos comunistas não têm
fim, senhores, não há nem sombra de napalm aqui, uma guerra limpa, humana,
defensiva e aí temos a prova das mentiras da propaganda soviética, o soldado português