é tão bom como os melhores, quem civilizou o mundo senão nós, e com muita Avé Maria
e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de um credo os matamos a todos, o meu
pai tem uma casa pequena numa aldeia pobre, claro, perto de Lisboa, que um tio do avô
dele mandou construir entre o cemitério e a base da colina sobre a estrada bordejada
de plátanos que conduz à cidade, quantas vezes andei por ali atrás das borboletas, o
meu pai nunca falou de borboletas em África, morcegos sim, enormes, não uma estrada
importante, a estrada secundária que leva à estrada importante com tantas camionetas
sempre, fábricas de vez em quando, nenhum quimbo deserto, nenhuns pretos e onde
um fim de semana por ano a família se reúne, desde muito antes de nós, para a matança
do porco, como tanta gente desta zona fazia, reunidos na adega, em silêncio, a
escutarem os gritos do bicho que se vão tornando mais humanos, mais fracos, que
acabam por se transformar em silêncio com o nosso silêncio em torno, o silêncio não
apenas da minha mãe, do meu pai, do meu irmão preto, de mim, o silêncio dos parentes
velhos que ainda moram aqui, respirando pelas bocas abertas porque viver dá trabalho,
neste lugar sem ninguém agora exceto bichos perdidos, cada vez menos, que teimam
ainda, à deriva nas ruelas, cães vagabundos, umas cabras, um burro manco, sem dono,
que os ciganos soltaram por não servir de nada, o meu pai e o meu irmão esquartejam
o porco e dividem-lhe a carne, com o meu irmão, à medida que foi crescendo, a observar
cada vez mais o meu pai de uma maneira idêntica à de sempre, obediente, tranquila
mas com qualquer coisa, talvez braços sem mãos, talvez cabeças sem orelhas, talvez o
meu pai, de joelhos, a cortar, a cortar, o meu irmão que pela primeira vez me assustava,
a minha mãe, desde que adoeceu, quase sempre imóvel numa cadeira, rodeada pelas
pedras que o médico lhe afirma ter dentro do corpo na ideia de poupar-lhe o sofrimento
de saber que um cancro do rim, amarrotando o lençol numa aflição de criança
- Não aguento mais isto não aguento mais isto
e quem aguenta mais isto, a febre, as dores, o cansaço, o médico explicando-lhe, a
desenhar num papel, que os rins fabricam pedras sempre a espalharem-se cá dentro e
existem medicamentos que com o tempo as dissolvem libertando-nos das dores e
anulando os inchaços dos ossos dado que os ossos, e não há quem não o saiba, pedras
também porque somos feitos, é evidente, basta pensar um bocadinho, de pedras e
alguma carne, toca-se a pele na cama, por exemplo, e percebe-se que pedra por baixo,
ou nos joelhos já agora, que são pedras redondas e talvez a minha mãe acredite nisso,
não sei, sempre falou tão pouco, sempre se escondeu atrás de si mesma e da borboleta
de lata, mesmo ao dizer - Amor
mesmo ao aceitar que a acompanhassem quase muda, a minha mãe que insiste em
cozinhar e ocupar-se de nós caminhando amparada de cadeira em cadeira, com um dos
pés mais lento que o outro porque o tornozelo ou a anca pedras recusando avançar, o
meu pai finge não ver ocupado em Angola e ataques e espingardas, pisando o soalho
com atenção às minas e detendo-se de súbito porque um helicóptero a caminho, na
ideia dele, até nós, a calcular pela inclinação das árvores e, por consequência, dos
móveis, com as folhas da cômoda e do armário vibrando, em certas alturas com um
canhão meticuloso que ia apontando o capim do soalho, noutras para levar os feridos
que não choravam nunca, esperavam deitados numa lona, adormecidos, pálidos, com