António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

pombos do Cardal Florido voavam sem descanso e a certa altura, sei lá porquê, deixei
de conversar com ela da mesma forma que fui deixando de responder a quem quer que
fosse, a minha mãe mais baixa que eu e nessa época altíssima



  • Estará zangada?
    e não estava zangada, não era isso, ficava a um canto e pronto, de palma na
    bochecha, vazia, mesmo na escola, mesmo no recreio, mesmo com as outras meninas,
    o que acontecerá depois de domingo à casa da aldeia sem ninguém, talvez uma sombra
    sozinha, de longe em longe, a espreitá-la com saudades sei lá de quê, se calhar da minha
    mãe

  • Filha
    com um copo de leite na mão enquanto eu acordava e as coisas se aproximavam de
    si mesmas, a janela tornava-se janela, a porta transformava-se em porta, as feições
    ocupavam o seu lugar uma a uma, ajustando-se aos sítios em que as deixara na véspera,
    a boca corrigia-se um bocadinho entre as bochechas, o sinal que faltava no queixo lá
    aparecia por fim, a minha mãe para o meu pai, de camuflado que já não lhe servia, era
    magro aos vinte anos, escondido sob a roupa dele, que contradição o tempo aumentar-
    nos o corpo enquanto estreita os braços e as pernas, as costas não direitas, moles, o
    pescoço mais curto, as feições que descem na direção do colarinho, vai ser velha não
    tarda, embrulhar as palavras em saliva, a voz da minha mãe distante, confusa, a do meu
    pai, mais novo do que eu, ao lado do condutor da mercedes

  • Acertas nos buracos todos da picada tu
    há tempos acompanhei-o a um almoço do batalhão, calvícies, cabelos brancos,
    abraços, barrigas grandes sem intestinos ao léu nem estilhaços de morteiro, muito
    tempo contra a sua que também crescera, olhos com lágrimas não sei se da guerra se
    do tempo, quando as pálpebras já não têm força

  • Não aguento mais isto não aguento mais isto
    e por vezes uma cintilação na têmpora ou no nariz que a boca mastiga antes de
    engolir, parecia-me que de quando em quando um crocodilo no restaurante, um
    antílope, um homem de bruços de que não quero falar, uma bomba de fragmentação a
    rebentar lá fora, correrias, balir de cabras, a imensa paz de certas noites, a minha mãe
    a insistir

  • Então o leite?
    enquanto o porco chegava, mal equilibrado nos cascos, numa carroça em pedaços e
    o meu irmão a olhar para as facas evitando olhar para o meu pai, já é tarde para os
    soldados morrerem novos, acabam idosos agora, a morte dos velhos tão simples, um
    soluçozito e os olhos abertos, ou seja a mesma expressão de alheamento, não olhavam
    para o copo de leite se a minha mãe

  • Filhos
    chupavam de quando em quando a própria língua a pensarem em quê, lembro-me
    de um primo meu

  • Dulce
    sem que conhecêssemos Dulce nenhuma, não havia na aldeia, talvez alguém que
    descobrira na tropa em Viseu e com a qual nunca falara, ia a passar com um colega e ao
    cruzarem-se com uma rapariga que não sabiam quem era alguém

Free download pdf