António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Não sei
    porque as pedras a não deixavam ver, tantas pedras à sua roda, tantas pedras nos
    olhos, tudo mais leve que a água, tudo mais leve que o ar, o médico para ela

  • Acho-a mais animada se não tivesse marido perguntava-lhe logo se me dava
    autorização de a acompanhar
    a falarmos disto e daquilo que o que não falta é vida, nós a pouco e pouco mais
    amigos, mais íntimos e o seu marido, aqui presente, se calhar a sorrir para nós, a
    entender, a perdoar, a afastar-se porque tenho as minhas táticas, os meus truques, a
    minha maneira de me insinuar com as mulheres, a minha esposa, por exemplo, não
    resistiu muito tempo e já lá vão trinta e dois anos que me atura, claro que tivemos os
    nossos problemas mas com um bocadinho de paciência tudo se resolve, dois filhos,
    quatro netos, uma relação sólida o que não quer dizer que a qualquer momento, a gente
    nunca sabe, e estou a ser completamente franco, as coisas não mudem, vamos
    aumentar um bocadinho o soro, vamos mexer na morfina, quero-a mais solta, mais
    animada, a interessar-se pela morte do porco porque comigo só os porcos morrem, os
    meus doentes não, posso trazer-lhe vários, pô-la a falar com eles, acreditar outra vez,
    mais que acreditar, ter a certeza que se cura, o médico para mim

  • Já parece mais bem disposta não acha?
    com a borboleta de metal no casaco, com outro anelzinho no dedo da aliança, com
    uma cadeira de rodas para não se cansar entre o quarto de dormir e a cozinha, tudo
    parece tão longe quando não estamos bem, tenho reparado que vocês, pretos, em
    certos assuntos não falham, estão mais perto do instinto dos animais, mais perto dos
    sentimentos simples do mundo, não lhes encheram a cabeça na escola de patetices
    inúteis, de que servem as capitais, as serras, batalhas que aconteceram há séculos, o
    que me tinha às cavalitas encontrou finalmente um trilho

  • Euá
    e principiamos a segui-lo, deu-me ideia que alguma coisa porque vozes, motores,
    volta e meia um brilhozinho de arame farpado entre as árvores, gente a lavar-se num
    charco, a minha irmã a segurar-me o cotovelo com força, de unhas a magoarem-me os
    ossos

  • Estou com dores e com vômitos não tens pó por acaso?
    de gestos a estremecerem, pálida, com um fio de saliva a escorregar-lhe da boca

  • Não tens pó por acaso?
    de repente tão frágil, tão pobre, a baloiçar o corpo para diante e para trás, a tentar
    um passo, a escorregar, a endireitar-se, a amparar-se ao muro, não com gestos de
    pessoa, com gestos de boneco articulado a baloiçar inseguro


  • olhos cavernosos, estranhos, só íris

  • Achas que na vila
    ao mesmo tempo que o meu avô para o meu pai, num soprozito

  • Calado
    porque as ervas se agitaram perto do relevo onde a primeira perdiz ia surgir
    finalmente, voltando a cabeça para nós sem nos ver, nem sequer às orelhas da cadela
    que principiavam a inchar da mesma forma que a ponta de dois dentes ao léu enquanto

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