a aumentar a gravidade da pergunta colocando os óculos
- Você trabalha em quê?
com as maçãs e as peras a aumentarem, curiosas, os móveis da sala de repente
solenes, mais caros, a minha mãe a inclinar-se para a frente a fim de ouvir melhor a
resposta, o meu pai a ecoar para si mesmo, separando as sílabas - Numa seguradora
como se escutasse a palavra seguradora pela primeira vez, calculando-lhe com a
língua o peso de cada sílaba - Seguradora
estudando uma de cada vez, juntando-as depois e achando a resposta ainda assim,
queria um doutor, aquele, mas em última análise uma seguradora vá lá, uma ocupação
aceitável, os empregados das seguradoras portuguesas são tão bons como os melhores
e uma cama de casal no meu quarto, cortinas novas que a minha mãe fez, um armário
maior, eu a olhar para o - Dá-me licença que a acompanhe?
como um estranho - O que faz este aqui?
porque de repente uma pessoa a quem a gente não está habituada em casa, a
surpresa da primeira reação - Quem é ele?
a segunda, ainda um pouco bizarra - É o Dá-me licença que a acompanhe?
a terceira, com uma ruga espantada na testa - É o meu marido
o meu marido significa metade da cama, metade do guarda fato, metade do ar, uma
respiração desconhecida a sobressaltar-me no escuro, uma tosse imprevista, havaianas
imensas no soalho, roupa sabe-se lá de quem, nem por isso em muito bom estado,
torcida na cadeira, não vestidos nem blusas nem sutiãs, um casaco gigantesco,
desconhecido, com o enchumaço de um dos ombros quase solto, calças a deslizarem
para o chão num vagar irritante dando a ideia que iam deter-se e não se detinham,
soltavam-se por fim para se agruparem numa espécie de monte com a fivela do cinto
espetada para o teto, pronta a furar-me o calcanhar, uma peúga no tapete com um
buraco no dedo maior, umas cuecas de calção às risquinhas com uma abertura à frente,
tudo propriedade, à primeira vista, de uma criatura insólita, não esquecendo uma toalha
de banho pendurada ao acaso da maçaneta da porta e uma gravata, de nó feito, num
ângulo do espelho, disposta a enforcar-me, bastava-me metê-la à roda do pescoço e
pendurar-me do candeeiro à entrada do quarto, de mão no peito, a olhar-me sem
entender, a entender que o meu quarto irremediavelmente ocupado pelo - Dá-me licença que a acompanhe?
tornada essa criatura inexplicável a que chamamos esposo, sempre de perfume
errado, a loção para a barba errada e o desodorizante errado, enjoativos, demasiado
doces, os do médico, vá lá, um bocadinho melhores enquanto ele afastava as costas da
mão uma das pedras do meu rim que lhe flutuava em torno, para a direita e para a
esquerda, hesitando onde poisar, despi-me na casa de banho para que o