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Até ao último momento quis dizer-lhe
- Vá-se embora depressa pai
e acho que me escutava, tenho a certeza que me escutava e fingia não escutar, dizer-
lhe - Pegue na mãe e volte depressa para Lisboa pai
e ele continuando a preparar a adega e fazendo de conta que não dava por mim, a
certa altura pareceu-me que respondia sem as palavras - Tem de ser não é filho?
da mesma forma que eu sem as palavras - Não tem de ser não consinta não quero que morra
eu a verificar a faca escutando as rolas bravas - Não me deixe matá-lo
como não deixou que me matassem em África interpondo-se entre mim e os
soldados, caminhando para eles decidido, desviando de súbito a arma para um alferes
que baixou a dele - Não te atrevas
e colocou-se à minha frente, e protegeu-me com o seu corpo, e conduziu-me para
um dos unimogues à entrada da aldeia - Este não
prevenindo o condutor - Se lhe acontece alguma coisa abato-te
o condutor, com medo dele, a recuar o unimogue para o interior da picada sem que
eu entendesse muito bem do que falavam, entendo agora, quis dizer-lhe - Não fique aqui
mas mesmo que lhe pedisse - Não fique aqui
ele não me ouvia ocupado a proteger-me, matou a minha mãe, matou o meu pai,
destruiu tudo o que pôde e no entanto passou-lhe uma coisa qualquer por dentro que
o obrigou a impedir que me matassem, mal chegava de uma missão na picada
perguntava logo - O menino?
com o dedo no gatilho, rodando a espingarda para a direita e para a esquerda até me
descobrir de cócoras, perto de um barracão qualquer, a mudar com um pauzinho o
trajeto das formigas, sem me dar atenção como quando quis dizer-lhe, na adega da casa
da aldeia - Vá-se embora depressa pai
e ele a fazer que não ouvia, talvez quisesse que o matasse, talvez desejasse que o
matasse não sei mas juro que não me apetecia matá-lo, gostava dele, o médico afiança
que a minha mãe vai morrer dentro em pouco, quando as pedras acabarem de a comer
e depois ele sozinho em casa com Angola a visitá-lo à noite, os feridos a chamarem-no - Meu alferes meu alferes
e ele encostado a um tronco sem poder fazer nada, ele para mim quando eu na adega