- Vá-se embora depressa pai
a responder-me sem as palavras - Vou-me embora para onde?
pensando na morte da minha mãe e portanto sozinho em casa a olhar a rua da janela,
os candeeiros à noite, a tremura das árvores, ninguém que lhe faça a cama, ninguém
que cozinhe para ele, um amigo da tropa, de vez em quando, a arrastar uma perna
porque uma bala no joelho lhe dissolveu a rótula, quando se ia embora o meu pai
chegava à varanda e ficava a segui-lo meneando-se em baixo, imobilizando-se a
descansar contra um tronco, se a minha mãe ali estivesse chamava-o para dentro e o
meu pai sentado na sala a olhar os próprios dedos, a minha mãe - Apetece-te um chá?
e o escuro da tarde a crescer, o porco à espera mas à espera de quê , se adormecer
encostado ao corpo da tua mãe melhoro - Dá-me licença que a acompanhe?
isso no caso das pedras se esquecerem de a levarem consigo, quando lhe tocava ele
a sorrir-me - Rapaz
contente de me ver, matou o meu pai, a minha mãe e não sei se sou capaz de matá-
lo, quero adormecer junto dele numa cama de bordão, quero os seus dedos no meu
pescoço - Filho
quero que continue a proteger-me eu que não necessito da sua proteção, isto é
necessito, trazia-me um copinho de anis, espalmava-se-me no joelho, orgulhava-se de
mim eu que não orgulhava ninguém, tinha o meu retrato na cômoda - O meu pequeno
enquanto eu na adega da casa da aldeia - Por favor vá-se embora depressa pai por favor vá-se embora
com os pombos do Cardal Florido a aumentarem sem cessar, não uma dúzia, não
duas dúzias, centenas, milhares de pombos girando, a poisarem um momento no
telhado, de garras enormes, olhos ferozes, bicos compridíssimos, não eram assim
dantes, tão tímidos, tão mansos, o que mudou neles, porque me detestam expliquem-
me, porque me odeiam, o Cardal Florido um bairrozito outrora e hoje em dia ruínas
desde que a fábrica de celulose faliu, sobram meia dúzia de paredes, um pedaço de
chaminé, anéis de corrente do cão de guarda na terra, um bicho sempre a trotar de um
lado para o outro ao comprido do arame, o meu filho sem largar a faca cujo gume
mudava se eu mudava, sempre apontado a mim - Vá-se embora
e embora para onde, explica-me, mal desses dois passos as pedras da minha mulher
impediam-me, a cara dela impedia-me, o braços nas minhas costas impedia-me, a voz
quase contra a minha boca - Amor
impedia-me, a cara dela, na noite do quarto, a aumentar, África um corpo de mulher
que não termina nunca, tantos braços, tantas pernas, tanto - Manda mosca
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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