me, do meu filho à minha espera no arame e eu contente que o meu filho à minha espera
no arame, acho que se me matares não me custa, acho que mesmo depois de morto,
juro-te, continuas comigo, a minha filha a suar, à espera, o meu pai para mim
- Leva-a lá para fora que não está em condições de assistir a isto
os pombos do Cardal Florido tornaram a voltar poisando no teto da adega, nas
árvores, no telhado da casa da aldeia, os falcões da serra interceptavam um ou dois
durante o voo e foram baixando, baixando, de unhas cravadas no corpo, até tombarem
num ângulo do cemitério onde os bicos os rasgaram em meia dúzia de golpes com gatos
de focinho atento, quietos no muro, à espera, a minha mãe na adega a olhar para mim,
a olhar para o meu pai, a olhar para mim de novo, em pequeno obrigava-me a beber um
copo de leite a meio da noite - Nunca mais engordas tu
e eu com medo que não tivesse orelhas nem mãos, com medo que se não mexesse,
esticava-me melhor os lençóis, arredondava a almofada, passava-me um dedo vagaroso
na testa - Já podes dormir outra vez
e afastava-se a caminho do quarto, sem cheirar a sangue nem a mandioca nem a
terra, recordo-me do som das molas da cama quando se deitava, do meu pai dizer
qualquer coisa, dela responder - As sentinelas garantem que está tudo calmo dorme
e pergunto-me se os falcões andarão lá por fora à espera do meu pai, ora mais baixo
ora mais alto, planando, até ao último momento quis dizer-lhe - Vá-se embora depressa pai
e não tem que ir para muito longe, basta fechar-se em casa até que o porco morra,
penso que já o matei e esqueço-me de si, ainda pensei pedir à minha mãe - Por favor tire o pai da adega mãe
porque ela havia de compreender, porque ela compreende, nunca tive de explicar
tudo, a maior parte das vezes nem precisava de falar dado que ela sabia, estou mais que
certo que adivinhou ponto por ponto o que sucedeu em Angola, as metralhadoras, os
unimogues, as granadas, os quimbos a arderem, acho, não tenho a certeza, que em
Angola tive uma irmã como aqui, mais nova do que eu, pendurada do peito da minha
mãe, da mulher de mãos cortadas, da minha mãe mas não me recordo dela, falo de uma
impressão apenas, claro, uma irmã não branca, preta, uma irmã preta calada e a minha
mãe, a mulher de mãos cortadas, a estender-lhe o peito que por vezes ela recusava, a
experimentar com uma cabra e a minha irmã a aceitar, depois do ataque não tornei a
vê-las, vi o meu pai a correr atrás de um leitão, vi um cabíri morto, vi o que me
pareceram mabecos a fugirem com não sei quê nos dentes, um pedaço de carne que
tentavam roubar uns aos outros, atacavam animais muito maiores, búfalos, palancas,
rasgavam-lhes os tendões das patas, obrigavam-nos a cair e depois mordiam-lhes a pele,
arrancando pedaços entre soluços agudos, até os ossos começarem a aparecer
lentamente, as palancas levantavam as cabeças, cada vez com menos força, e então os
mabecos abocanhavam-lhes os focinhos e os bichos finalmente quietos, apenas uma
pata que se dobrava e esticava devagar, sem força, um soldado disparou uma rajada
contra eles, um dos mabecos pulou mas continuaram a morder lutando contra carne