e depois aquela voz carnívora
- Amor
que nos ata, nos amarra, nos esmaga devagar, o porco para mim - Se me cortares as cordas eu ajudo-te e fugimos ambos daqui
de Sua Excelência, da minha filha, dos grilos queimados, dos pretos que se vingam - É a tua vez de morrer
de um gineto na orla da serra a seguir-me de longe, parando se eu paro, caminhando
se caminho, esperando que eu desatento para me filar o cachaço, a minha mulher - Apanhamos-te
ela tão tímida ao princípio, tão envergonhada e eu com pena do meu pai, palavra de
honra, com pena, eu meio esquecido de África e no entanto continuando lá,
confundindo episódios, inventando recordações, misturando lembranças, contos
antigos, memórias desbotadas, fragmentos sem sentido, a minha mãe ora conosco ora
longe porque as pedras a levavam e a traziam, a minha avó para mim em criança a
segurar-me o braço - Mete-te medo o porco
o meu avô indignado - É um maricas esse o que herdou ele de mim?
sem socas de madeira nem avental de borracha, o meu avô a espetar a faca no porco
até se encontrar a ele mesmo, de cabeça encostada à sua cabeça gritando também, uma
segunda faca, uma terceira - Demora tempo a morrer
com um cigarro espetado nos dentes a fumar, a fumar e o nariz e o peito escarlates
de sangue, o meu avô não sei para qual dos dois, eu ou o bicho - Morre
medindo-nos alternadamente, a minha mãe de súbito - Não
numa voz muito mais forte do que aquela que era capaz, uma voz de súbito sem
doença, sem pedras e que eu nunca escutava, falava baixo sempre, movia-se quase sem
ruído, existia baixinho, já não tenho medo do porco como já não tenho medo da guerra,
já não tenho medo de mim como o alferes paraquedista não tinha medo dele mesmo,
ainda acenou do aparelho - Até já
e não tornei a vê-lo, a mão dele tão pálida, a boca dele tão branca, os olhos quase
fechados - Até já
e não foi o helicóptero que se afastou, foram as copas das árvores que começaram a
inclinar-se cada vez mais longe, ultrapassaram a chana, tranquilizaram-se, minúsculas,
antes da segunda chana, o rádio veio comunicar-nos - O nosso alferes paraquedista manda um abraço de adeus a todos
numa voz que tremeu ao longo da frase embora ele pensasse que não tinha tremido
conforme nós pensamos que não tínhamos tremido, lembro-me de nos prepararmos
para partir, de começarmos a caminhar em losango com o abraço para todos conosco,
lembro-me da beleza de Angola, do céu, das cores, do corpo da minha mulher a receber-