grande diferença entre a roupa e a alma, uma veste por fora, outra veste por dentro, é
tudo, aposto que têm botões iguais as duas, nunca lhe ouvi outra palavra que não fosse
- Bem
extraída de onde moram sensações ferrugentas que não se adaptam umas às outras
e chiam e protestam, olha aquelas senhoras que se amparam a bengalas de suspiros que
ainda lhes permitem andar, um bocado de lado, um bocado incertas mas apesar de tudo
andar, ou antes deslocarem-se um bocadinho até à parede mais próxima onde ficam, de
boca aberta, à espera de um reforço de oxigênio, com uma segunda granada o morteiro
lá se desfez por fim num espirro vertical de poeira e de aço, quando o meu avô souber
mata-se, o que rezava, soubemos por uma mensagem, faleceu no Luso, deixou uma
Virgem de barro e um pai que meses depois se dissolveu num poço, ao trazerem-no para
cima, veio uma bota e um canivete ou seja a fortuna de um homem, que mais coisas
temos afinal, o médico examinou o envelope a assoar-se, demorando-se no papel,
informou do interior de linhas datilografadas - Temos aqui umas pedras no rim nada que a gente não trate
e no entanto vê-nos acompanhando até agora, o médico a serenar a minha mãe
através de um nevoeiro de bronquite - A vesícula ganha pedras a bexiga ganha pedras é o que não falta no corpo
umas vezes aumentam-nos os ossos, outras circulam pelas veias, outras libertam-se
da gente e rodopiam-nos em torno, por exemplo na adega, mesmo com o porco
pendurado do gancho, vemos algumas a circularem por aí, o meu pai surpreendido - Pedras?
o médico a estudar a minha mãe na marquesa atrás do biombo, segredando
enquanto ela se vestia - Temos aqui uma situação complicada
enquanto eu confuso dentro de mim - Dá-me licença que a acompanhe?
tão baixinho que toda a gente ouviu, acompanhá-la até à porta de sua casa e
conversar consigo sem resposta nenhuma, o Bichezas para o meu pai - Primeiro que a Fininha falasse comigo foram tardes e tardes não imagina o cuspo
que eu gastei meu alferes
tudo isto para morrer em África sem tornar a vê-la, ainda lhe deu uns brincos, ainda
lhe deu um colar, ainda foi a casa dela conversar com os pais, a mãe de Sua Excelência
a apontar-me - Um preto?
apesar dos meus sapatos engraxados, do meu fato novo, da gravata de pintinhas que
por uma unha negra não era de seda - Um preto?
sem que o meu pai me defendesse - É meu filho
porque não estava comigo, ele que me defendeu sempre, acompanhava-me à escola,
trazia-me da escola, argumentava com a professora - Lá por ser preto não quer dizer que seja mais estúpido que os outros por dentro é
branco como eles