e eu na adega da casa da aldeia a ouvi-lo
- Lá por ser preto não quer dizer que seja mais estúpido que os outros
com dificuldade com os números, com dificuldade com as letras, com dificuldade de
juntar aquela confusão toda, formar palavras, somar, subtrair, rios não autênticos, uns
traços sem crocodilos nem cobras, nenhuns tiros, nenhuns quimbos a arderem, ninguém
sem mãos nem orelhas, toda a gente viva menos, ao que parece, a minha mãe
verdadeira entre duas palhotas, que difíceis de perceber as pessoas aqui, os brancos, a
maneira como vivem, o que dizem, o que fazem, o meu pai contava que o general - Sinto nos vossos semblantes a alegria de irem servir a Pátria
e alegria alguma, medo, os defuntos em caixas, não numa tábua, o capitão para ele - Ainda se vai arrepender de o levar consigo
o capitão para ele - Quando for grande mata-o
e não queria matá-lo, palavra de honra que não queria matá-lo, poisei a faca na mesa
da cave, voltei a apanhá-la, voltei a poisá-la, não queria matá-lo, não queria ver o seu
sangue, não queria ouvir os seus gritos, não queria olhar para os alguidares no chão, a
mãe de Sua Excelência a desprezar-me - Um preto
quando o meu pai não me desprezou, defendia-me - Ai de vocês se lhe tocam
se calhar não foi ele
(mas foi ele)
quem cortou as orelhas, se calhar não foi ele
(mas foi ele)
quem decepou as mãos, se calhar não foi ele
(mas foi ele)
quem furou as costas do meu pai e o deixou de bruços na terra, se calhar não foi ele - (mas foi ele)
que degolou as galinhas, os cabíris, os cabritos, que deitou gasóleo na palha, que
deitou fogo aos quimbos, que nos matou a todos porque se calhar estou morto, morri
ao trazerem-me de África ou daqui a nada, em Lisboa, um bando de mabecos apanha-
me por trás e quebra-me os tornozelos, os joelhos, os cotovelos, a espinha, as pessoas
à espera nas cadeiras encostadas às paredes da cave, o meu avô, que não conheci, a
lavar os braços numa celha, a arregaçar as mangas e a secar-se num pano da mesma
forma que o meu pai a lavar os braços numa celha, a arregaçar as mangas, e a secar-se
num pano, nenhuma metralhadora na pista de aviação, nenhum morteiro, apenas o
murmúrio do vento nas ervas e num janelico à direita o cemitério, a mesa de pedra onde
colocamos os defuntos antes de enterrá-los e as pessoas em torno caladas, as mulheres
de lenço, os homens de chapéu na mão e tudo agora sujo, ao abandono, já não há gente
para morrer aqui tirando um ou outro cão vadio, um ou outro velho e nós, os falcões da
serra, os mesmos do princípio que nunca diminuíram, a subirem os montes ou a
baixarem de súbito na direção de um lagarto ou de uma serpentezita para subirem de
novo, escalando o ar degrau a degrau porque o nada, como se sabe, degraus sucessivos,