- Porquê?
e sei lá a razão senhor, pergunte a Deus que pode ser que responda, não me pergunte
a mim que não tenho nada com isso nem pesco peva de estratégias celestes, se pescasse
ganhava a lotaria e comprava-lhe uma manta nova, mais comprida que essa, de forma
a não se verem os chinelos onde os pezinhos espreitam, isto num segundo andar
acanhado no qual nem as vossas almas cabiam e portanto tu e os teus pais almitas
apenas, iguais a essas sementinhas que entram pela janela cheias de estames levíssimos
e flutuam, flutuam, poisam um momento na cômoda, erguem-se de novo e saem numa
trajetória tranquila, ignoram haver impresso na nossa bochecha uma lágrima de
saudade tão pura que nem dói, a tua mãe, desaparecida há tantos anos, aqui no quintal
da aldeia agora mesmo - Não se preocupe senhor
sempre por senhor até ao fim coitada, sempre por senhor, agradecida mas de quê,
suave, não engolia e no entanto arranjava forma de me consolar a mim que se for
preciso até pregos devoro, devorei o pai do meu filho, devorei o alferes paraquedista,
devorei os outros todos, ando a devorar o psicólogo do hospital e o seu círculo de
infelizes, não pensem nem um instante que não vos como, como-vos, já comi dois ou
três, como o resto a seguir e nenhum soluço de saudade juro, os olhos secos, ferozes, a
minha mulher para mim - Não gosto dessa luz na tua cara
e que luz rapariga se continuo igual só que procuro esconder a tal lágrima de forma
a que não dês por ela, não olhes para mim que a descobres, não me toques a fim de não
notares as costelas que vacilam, não me aconchegues os lençóis enquanto não destruir
tudo à minha volta, falta o soba, falta um restinho da minha pessoa, aquele que te
suplica - Ajuda-me a esquecer
quase de mãos postas, tão pequeno, tão frágil, e adormecer no interior de mim onde
só cabem cardos, coisas que picam, me envenenam, magoam, por favor chama a sede
do batalhão pelo rádio - Manda mosca manda mosca
para que a sementinha do helicóptero me leve sobre as árvores da mata para longe
desta aldeia de velhos, desta adega, desta faca daqui a horas ao mesmo tempo no porco
e em mim, desta faca que se curva em mim, deste sangue, pareceu-me que o automóvel
da minha filha um caco podre na estrada e um bando de pombos sobre as árvores do
cemitério comigo a pensar que se pudesse destruía o automóvel dela e os pombos
também, a infância mais complicada sobretudo com a minha mãe a empurrar-me a
têmpora para a almofada de novo - Que fantasmas?
a minha mãe - Fecha esses olhos
e de olhos fechados via melhor ainda, um senhor de chapéu tirolês - Sou o teu primo Afonso
uma senhora de luto a abrir e a fechar o leque - Não acredito que não dês por mim sou a Palmira rapaz
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1