e recordava-me do leque com toureiros impressos, não me recordava dela, a minha
mãe a empurrar com um dedo a única pálpebra que eu tinha visto, que a outra a
almofada roubou-ma
- O que é que eu te disse?
disse-me que fechasse os olhos mas é impossível agora com a minha filha a chegar, a
minha mulher armou-lhe a cama no antigo escritório onde sobrevivia numa
prateleirinha um dicionário que o bolor e a umidade engordavam, senti a minha filha
empurrar a cancela da frente e ao contrário do que eu pensava não me levantei,
levantou-se a minha mulher por nós dois - Não recebes a miúda?
e se tivesse ao alcance a cana do meu pai riscava o chão de linhas paralelas, apagava-
as com o sapato e tornava a riscar até que ela da cozinha - Boa tarde
sem me aparecer à frente, nem um beijo, nem uma careta, nem um aceno para
amostra palavra, percebi-a a falar mas não distinguia as palavras, percebi a minha
mulher - Não valia a pena trazeres comida nenhuma
a minha filha a bichanar qualquer coisa breve como sempre, quer lá saber de nós e
portanto uma conversa conhecida que se repete ano após ano, a comida um saquito de
bolos ou duas empadas pequenas ou meia dúzia de nêsperas, fosse o que fosse com a
fatura lá dentro e a minha mulher a obrigá-la a aceitar o dinheiro acrescentando notas - Era o que faltava
que a minha filha a fingir-se relutante guardava na carteira quase vazia conforme em
geral não se embaraçava com bagagem, usava a mesma roupa sexta, sábado e domingo
inteiros consoante eu em Angola o mesmo camuflado sempre, ela uma escova de cabelo
e a pasta de dentes se tanto, se me houvesse aparecido em África a estender a lata
ferrugenta do outro lado do arame não me surpreendia um pito, no caso de não haver
jogado no lixo os trapos militares vestia-os agora para me aproximar dela, vi uma ocasião
olhos assim numa prisioneira que nos desprezava a todos, o chefe de brigada da polícia
política deu-lhe um estalo e ela desafiava-nos, dois estalos e desafiava-nos mais, um
pontapé e desafiava-nos do chão, um tiro na perna e continuou a desafiar-nos
encarando-nos sempre não de baixo para cima, de cima para baixo dado que nós mais
que enterrados, reles, de forma que tiros e tiros do chefe da brigada - Ainda não estás contente?
até que se acalmou e não afirmo que submissa ou revoltada conosco, alheada, longe,
o chefe de brigada para a prisioneira - Podes ir-te embora agora
e realmente foi até hoje ao visitar-me na aldeia disfarçando-se de minha filha, aposto
que além dos bolos, das empadas e das nêsperas um pedaço de mandioca já antiga, com
o mesmo cheiro que as raízes nas esteiras ou o peixe seco fora das malas ou os caricocos
depois da chuva, a minha filha desde há anos que não - Pai
nunca - Pai