a minha filha que se não fosse filha da mulher que é tinha a certeza de não ser cá do
rapaz
- Se lhe apetece continuar a conversa continua sozinho e eu volto para Lisboa julga
que me dá prazer estar consigo?
e não te dá prazer estar comigo porquê, nunca te obriguei fosse ao que fosse, nunca
te aborreci, nunca te exigi nada, quiseste largar os estudos e largaste, quiseste ir-te
embora e foste, nunca te dei ordens, nunca te ralhei, nunca me meti na tua vida, aceitei
sempre, andas vestida como os espantalhos e eu caladinho, não nos visitas dois ou três
meses seguidos e eu nem pio já reparaste, nem pio, se te dá na gana cumprimentares-
me - Boa tarde
respondo logo - Boa tarde
se te dá na gana não me passares cartão faço de conta que não vejo e não te vejo a
ti nem a tua roupa às três pancadas, os teus sapatos quase de homem, de atacadores
deslaçados, o teu relento a insônia porque dormes de certeza mal filha, o que pensarás
à noite no buraco onde moras e não é para te ofender mas aposto as minhas vergonhas
que não moras num apartamento mesmo pequeno, mesmo longe de Lisboa, moras num
buraco entre paquistaneses de chinelos e ucranianos das obras, que companhia não é,
que maravilha nenhuma torneira a funcionar não é, que bom ser desgraçada não é, a
gaita é que me inquieto por tua causa, dou-te a palavra de honra que adorava não me
inquietar e o que posso fazer, é mais forte do que eu, inquieto-me, que bom seria não
me preocupar contigo, durmo mal igualmente, Portugal inteiro a dormir e a gente os
dois despertos de olhos no teto que não existe, existimos nós num grande espaço vazio,
tu a pensares ignoro em quê e eu a pensar em ti, que parvoíce da minha parte não é,
que estupidez, que asneira mas não consigo deixar de pensar em ti, se calhar amo-te
olha, devo ser parvo, devo não, sou mesmo parvo mas amo-te, nem acredito no que
estou a dizer mas amo-te e chega de palermices, esquece os meus discursos, não sinto
seja o que seja, é tudo igual ao litro menos o alferes paraquedista, menos o primo
Afonso, menos Moscovo a treze mil quilômetros, menos eu em África ainda, é tudo igual
ao litro para mim menos tu, a única coisa que não é igual ao litro és tu, a única coisa que
jamais será igual ao litro és tu e portanto se te apetece tratar-me por - Você
trata-me que não mudas nada em mim, continuarei a ser o mesmo filhinha, o teu pai,
o teu amigo, o teu, o teu refúgio se quiseres, como quiseres, quando quiseres, se te
apetece assim tanto escapares-te de mim e voltar para Lisboa volta que eu perdoo, eu
entendo, eu aceito, esquece a matança do porco e volta para Lisboa no teu caco podre
que não percebo como não se desfaz na primeira subida, volta para Lisboa desde que
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