António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

comigo dando-me conta que a lampadazinha da gasolina não um pontito vermelho
no tabliê, enorme, mostrando-nos e sumindo-nos, mostrando-nos e sumindo-nos, os
meus dedos



  • Não te atrevas preto
    de novo no guiador, submissos, inocentes, sem préstimo, compreendendo que só os
    brancos podem queimar, matar, cortar orelhas e à gente cabe-nos o destino de sermos
    queimados, mortos, amputados e portanto para quê outra identidade, outra terra,
    outros pais se não saí de África, continuo em África, morrerei em África erguendo os
    cotos para os brancos

  • Chindele
    enquanto caio senhores embora tente erguer-me, enquanto me calo embora tente
    falar, enquanto morro embora tente viver, eu

  • Chindele
    e Sua Excelência
    (além do pescoço as tais coxas dentro e fora do vestido curto, a harmonia entre as
    nádegas e as ancas, a cintura nítida, as corolas do peito, o caule da garganta tão fácil de,
    a boca que me apetecia empurrar até à minha braguilha enquanto as unhas compridas
    me desembaraçavam dos botões, os lábios, a língua, o cuidado com os dentes e os
    ombros que vibram, as costas que vibram, a outra mão em ti e eu feliz no automóvel,
    eu de olhos fechados e todavia conduzindo)

  • O que é isso?
    e Sua Excelência

  • Acaba imediatamente com as ordinarices preto
    ao mesmo tempo que um dos cotas me oferece um grilo assado, me estende a cabaça
    do marujo, me responde

  • Euá
    a mim que apareço e desapareço conforme a luzinha vermelha não da gasolina, do
    último resto de quimbo a arder, me persegue, daqui a pouco a aldeia, daqui a pouco a
    casa e mau grado a noite o meu pai junto ao muro do quintal a espiar-nos tentando
    adivinhar a gente pelo contorno do carro, pelos ratés do escape, pelos faróis, já que
    pensa que gosta de mim qual das minhas orelhas prefere para a sua garrafa onde se
    tornará, é uma questão de meses, cartilagens que a minha irmã há de procurar numa
    cômoda qualquer abrindo-a e fechando-a logo

  • Só queria ver-te adeus
    a sumir-se de mim, mana mana, e nisto apareceu-me uma primeira carroça na
    estrada a anunciar

  • Estás perto
    com um cãozito de focinho levantado e cauda erguida trotando entre as rodas, depois
    da carroça duas bicicletas e a voz do meu pai

  • Não as ultrapasses assim dá-lhes espaço para caírem
    na época em que ainda não desistira de me explicar o mundo, volta e meia telefona-
    me para o emprego

  • Descansa que não é nada apeteceu-me desejar bom dia devo estar a envelhecer
    adeusinho

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