António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

e continua a ser um segredo só nosso porque não disse nada a ninguém, tantos anos
depois de você morrer continuo calado, nem com a minha mulher desabafei já vê, temos
um segredo embora o alimente sozinho, lembro-me do seu bigode e do olho esquerdo
(olho esquerdo?)
do olho esquerdo mortiço, nem escuro nem claro, uma névoa



  • O que vê você senhora?
    e ela no interior de um lenço preto, com o rosário nos dedos

  • Vejo-te a atormentar galinhas maroto
    passando as contas em orações cochichadas, o meu pai no muro também a vigiar a
    estrada, sempre a acender o cigarro já aceso com fósforos incertos que se quebravam
    na lixa, a entrar e a sair de casa numa pressa de cuco com vênias e tudo, só lhe faltava
    cantar horas, a minha madrasta

  • Queres pôr-me doida também?
    isto há quarenta e cinco, quarenta e seis anos, uns meses antes de me graduarem
    alferes e eu embarcar para Angola num barco cheio de silêncio e gritos ou seja o silêncio
    gritava e os gritos calados, quem me traduz isto em linguagem de gente, eu agarrado ao
    lavatório do camarote, de galões novos, a vomitar, se ao menos um rebuçado da minha
    avó na bagagem ou frangos a jeito para os picar com uma cana e eles tropeçando uns
    por cima dos outros a fugirem de mim, o meu pai no muro com dois cigarros acesos, três
    cigarros acesos, dez cigarros acesos, há quem trabalhe no circo com uma dúzia de bolas
    no ar, no cais marchas militares juntamente com a chuva, o general numa varanda a
    mexer a boca calada, foram os altifalantes que lhe roubaram a voz misturando-a com a
    aflição das gaivotas, sinto nos vossos semblantes a alegria de irem servir à Pátria e eu a
    servir a Pátria molhando a camisa de prantos, o blusão, a gravata, um fantasma a babar-
    se coitado que pensava ser eu, a minha madrasta para mim apontando o meu pai

  • Vê lá tu se o acalmas antes que lhe dê um aneurisma
    e tanta chuva em janeiro no Tejo meus amigos, tanta chuva em janeiro comigo não a
    pensar no meu pai, a pensar na matança do porco, na faca, no alguidar de sangue, nos
    sujeitos que eu não conhecia, de calças agora vermelhas, a suspenderem melhor o
    animal de modo que me aproximei do meu pai ao mesmo tempo que um par de faróis
    em baixo na estrada virava para a azinhaga que conduzia à aldeia e o meu pai aliviado,
    feliz, a aplicar-me uma palmada que alterou a ordem das vísceras

  • O teu irmão vai levar uma descompostura pelo atraso que até anda de banda
    a caminhar triunfal para a cancela da entrada, atravessando a casa a acender todas
    as luzes que não eram muitas, mesmo as fundidas palavra, ordenando de caminho à
    minha madrasta que aquecia a sopa

  • A sopinha depressa que aquele camelo dignou-se chegar
    alcançando a porta da rua ao mesmo tempo que um jipe de onde saíam dois guardas
    não autoritários nem rápidos, empenados, lentos, que ele conhecia de certeza porque
    conhecia toda a gente, tão sociável aquele, tão popular na aldeia como no bairro em
    Lisboa, cheio de pancadinhas nas costas e beliscões na barriga, cheio de

  • Meu cabrão
    amigáveis até com o padre falava

  • Ainda lhe arranjo uma namorada prepare-se

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