ela que se não fosse eu trabalhava com as vizinhas numa orla de mato a oferecer-se
aos camionistas, com um calhau grande na bolsa a fim de desencorajar os calotes ou
que tentassem pagar com a boneca meio nua que dançava num fio de nylon aos
saltinhos no retrovisor juntamente com um terço cuja cruz ia baloiçando feliz, confesso
que houve ocasiões em que me servi dessas senhoras que desconfiavam de mim apesar
da ajuda do relógio de pulso doirado e do engaste do anel
- Trazes dinheiro preto?
elas de cara sob o cotovelo para que eu não as beijasse e portanto devia ter-me
deixado em Angola nosso alferes, a olhar os leprosos lá em baixo, um ou outro crocodilo,
as palancas a quem os cabíris ladravam, a minha mãe que até de costas se dava fé de
quanto emagrecera, não se imagina o que as pedras conseguem - Algum problema filho?
e o médico de nariz nas análises a dar corda ao ânimo do meu pai - A regata ainda não acabou vamos ver vamos ver
com mabecos que não sei como ninguém no hospital via, aqueles focinhos, aquelas
orelhas, a passarem pela secretária farejando-nos, o médico a subir os óculos para a
testa - Vamos ver
até que a minha mãe se sumiu no biombo e então ele inclinado para a gente, baixinho - Com sorte talvez seis meses
endireitando-se risonho sobre as nossas cabeças - Fica-lhe bem esse casaco azul minha senhora
um casaco aliás já antigo, um bocadinho gasto nas mangas
(que eu visse nunca tomou cuidado consigo)
com uma borboleta de metal de asas abertas na lapela e a minha mãe ao lado do
biombo a fingir que contente, libertando, de dedos na nunca, o cabelo que ficou preso
na gola, a soprar um - Obrigada
tímido, terá ouvido o médico, não terá ouvido o médico mas ouviu de certeza a cara
do meu pai cujos ossos se amarrotavam uns aos outros porque o medo os apertava,
apertava e portanto atirei a minha mãe para o balde e substituí-a logo por aquela que
era quando a conheci, ainda nova, bonita e que estava lá dentro na cômoda onde
guardou as suas preciosidades antigas, uma boneca sem um braço, um caderno de
cópias da escola, um cavalo marinho seco num frasquito, medalhinhas, retratos, o que
permanece na areia da memória quando as águas do passado recuam embora lhe
faltasse um ursito de pano e a voz de teatro de fantoches de uma tia solteira a censurá-
la do alto
(tudo tão grande nesse tempo menos ela)
num desdém cruel - Quando é que cresces?
com o alferes de regresso para a defender tapando-lhe os ouvidos - Não oiças
e como posso não ouvir, explica-me, se até a tua aflição a meu respeito eu oiço, pior
que África, pior que a guerra, pior que o alferes paraquedista quando o meteram no