António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Pai
    ele que não falava português disse

  • Pai
    sentado no chão a brincar com uns pauzitos, todo concentração e dedos, jamais vi
    nada tão sério como uma criança que brinca, sem atentar em mim, quase aos meus pés
    e distantíssimo dado que entre os pauzitos e ele um entendimento secreto e apesar de
    poder tocar-lhes não sei onde estavam, o que existe mais perto é sempre, isso a vida
    ensinou-me, o mais difícil de achar, espreitei o quarto e a minha mulher já não a pensar
    na mãe, adormecida na cama com o casaco da borboleta vestido e então compreendi
    que o abotoara contra a morte que na sua ideia a ameaçava não dentro de si, sentada
    na bordinha do colchão a mirá-la ou sob a forma de medicamentos na mesita de
    cabeceira, um copo de água, um termômetro, esses disfarces dela, pensa um bocado,
    hesita, decide-se, põe-nos a palma na testa e vai-se embora deixando-nos ou seja
    deixando no nosso lugar aquilo que não somos vivos enquanto a borboleta aumenta no
    casaco, farripas molhadas que nos vão crescendo nas têmporas e rugas diferentes
    daquelas que tínhamos parecem tornar-nos mais sábios, mais graves, as nossas mãos
    tão mãos, um restinho de pupila estagnado na pálpebra, um relevo que diminui no
    lençol, a minha mulher ao tocar-me no braço

  • O que foi?
    aproximando-se a custo a recuperar a cara, a poisar dois dedos na bochecha

  • Deixei-me dormir
    e a minha filha à entrada do quarto, de palma na maçaneta, não bonita coitada, não
    elegante coitada, com uma saia torta que não ligava com a blusa onde um botão
    desacertado, dando ideia de ser maior que os restantes, pedia ajuda em vão, quem
    nesta vida, digam-me, auxilia os botões, quem se interessa por eles, a minha mulher, a
    quem o tempo nunca preocupou, subitamente inquieta

  • Que horas são?
    como se as horas lhe estivessem medidas, o que saberá ela ao certo do rim, não
    perguntava fosse o que fosse ao médico, limitava-se a concordar acenando a cabeça,
    não parecia inquieta, fazia os exames e os tratamentos que lhe mandavam, não se
    observava ao espelho a medir desgraças, não se lamentava da perna direita um
    bocadinho presa, sentia-lhe as insônias porque o corpo demasiado imóvel e aposto que
    os olhos abertos pensando em quê, imaginando o quê, sentindo o quê, se lhe tocava ela
    indiferente ou então um sorriso porque o escuro mudava, quer dizer permanecia escuro
    mas com ela mais ao meu lado lá dentro, quase como há trinta anos, quase como há
    quarenta e a propósito de anos que idade terá a minha filha que não sei ao certo, tenho
    de fazer as contas a partir da altura em que vim de África mas em que altura vim de
    África se continuo em Angola, mabecos e mabecos que nos perseguem aos dois
    tentando morder-nos os tornozelos, os joelhos, tentando pular até às nossas gargantas,
    o chefe de brigada para mim, magoado

  • Quando será que as pessoas deste país irão perceber que tomamos conta delas?
    e o psicólogo do hospital enquanto o chefe de brigada lhe apontava a pistola e ele
    lhe afastava o cano com as costas da mão

  • Não acredito

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