- Não precisamos de Bíblias obrigada
e a porta fechada, o capacho da caravela a extinguir-se, eu nas trevas do patamar
esperando que a sombra dos pombos na claraboia lá em cima me ajudasse a descer, não
é apenas a luz, há sombras que nos guiam, a do meu avô por exemplo - Atenção ao degrau rapaz
a do meu tio Jerônimo que a carta de chamada do Canadá levou e me ofereceu uma
carabinazita de pressão de ar para os tordos na aldeia com a qual eu nunca acertava
nem num sapo a dez centímetros quanto mais num pássaro, o meu pai para mim - O melhor é guardares isso que ainda te magoas
muito antes de Angola, claro, muito antes de me magoar, três porcos no chiqueiro, o
nosso o maior, de pestanas transparentes mastigando, mastigando, de vez em quando
um suspiro, de vez em quando um soluço e eu a vê-lo do muro calculando-lhe o peso - O meu marido chegou mais cedo do Porto não precisamos de Bíblias
e quando o trinco se encaixou uma voz lá dentro - Quem era?
a minha mulher - Amor
passados tantos anos, o meu filho em roupão - Ainda sobra café?
a insistir com o Bichezas - Ainda sobra café?
e o Bichezas a procurar na bancada, entendi, já no primeiro degrau, a colega de
emprego para o marido que chegou mais cedo do Porto - Uma dessas Testemunhas de Jeová que querem à força catequizar a gente
e fui descendo as escadas, vencido, com remorso pela minha mulher, zangado
comigo, a detestar-me, aflito com aqueles degraus imensos que me trocavam as pernas,
medroso do carrinho de bebé, já não recordo em que piso, que me atacaria de novo, o
chefe de brigada num gesto entristecido - Há quem compreenda mal o nosso trabalho sabia?
de repente quase humano, quase infeliz, quase frágil, quase terno, quase a apertar-
me o ombro, surgem-me momentos em que se pudesse abraçava toda a gente, que
patetice, o Bichezas a servir o meu filho - Um bocadinho aguado não acha?
como se ele um branco como nós, não um macaco apanhado numa lavra de apoio,
como se ele não um inimigo, se eu tivesse a gê três, se tivesse uma faca, se o deixasse
ficar em África para servir de mascote à companhia seguinte em lugar de o trazer para
Portugal, para Lisboa, para a minha casa, em lugar de lhe dar o meu nome e o considerar
meu filho, de novo a rua comprida e estreita, as lojecas, os prédios, a minha mulher a
ver as horas no relógio da cozinha e a voltar ao sofá, ainda não inquieta com o meu
atraso, ainda não apoquentada pelas pedras porque foi há tanto tempo isto, cruzei-me
com a colega do emprego duas ou três vezes depois, duas, uma no corredor e outra
junto aos lavabos que em lugar de papel para secar as mãos deitava um hálito elétrico
por um bico cromado que não secava seja o que for e me obrigava a esfregar os dedos
nas calças, a colega que não me cumprimentou, na primeira ocasião começou logo a
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1