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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 2020 Especial H5
Roberto DaMatta
FOTOS NILTON FUKUDA/ESTADÃO
IDOSOS DIZEM NÃO AO
CONFINAMENTO
Para entender a dificuldade de adesão, especialistas falam sobre o que pode levar a terceira idade a essa atitude
Solidão.
Há quem
diga que a
depressão
de ficar em
casa é pior
do que o
vírus
l]
Camila Tuchlinski
Por que a sociedade trata o ido-
so como criança? Após, pelo me-
nos, 60 anos de experiência de
vida, passando por inúmeras si-
tuações, desilusões, conquis-
tas e aprendizados, por que
seus sentimentos não são vali-
dados? A maneira pejorativa co-
mo a sociedade sempre enca-
rou a velhice impede que se per-
ceba que existe uma multiplici-
dade de idosos.
“Nós nos deparamos com co-
letivos muito desiguais: idosos
assistidos dignamente e outros
totalmente desamparados.
Mas o que existe em comum
nesses dois universos é a manei-
ra pela qual a sociedade perce-
be essa parcela imensa da popu-
lação: pessoas sem potência de
vida. Basta observarmos como
os velhos são, infelizmente, tra-
tados pelos mais jovens: no di-
minutivo, como se crianças fos-
sem”, avalia a mestre em Geron-
tologia Social pela PUC de São
Paulo Maria Antonia Demasi.
A doutoranda pelo Departa-
mento de Ciências Sociais na
mesma instituição vai além: “A
questão é que, aqueles que no-
minamos ‘velhinhos’, pessoas
em diminutivo, são homens e
mulheres com uma construção
de vida tal que os fizeram che-
gar até aqui, inteiros, mais ou
menos vulneráveis, frágeis,
mais ou menos saudáveis, vi-
tais, mais ou menos demencia-
dos frente às intensidades do
existir”, afirma.
Além de multiplicidade de si-
tuações sociais, os idosos, que
compõem o grupo de risco para
coronavírus, foram agrupados
pelos critérios médicos de fun-
cionamento fisiológico huma-
no: tipo de sistema imunológi-
co, de capacidade pulmonar e
cardíaca, por exemplo.
“Há idosos completamente
ativos do ponto de vista profis-
sional, físico e social em um ex-
tremo, e, no outro, idosos total-
mente dependentes física e
mentalmente”, ressalta a neu-
ropsicóloga Gisele Calia.
Para entender a dificuldade
de adesão de todos à quarente-
na, é necessário encontrar fato-
res em comum que possam es-
tar presentes para que grande
parte desse grupo tenha apre-
sentado resistência. E este é o
maior desafio.
Para os pais que já passaram
dos 60 anos, é muito difícil pas-
sar de uma situação em que
têm autonomia para uma de de-
pendência, como se fossem “fi-
lhos dos filhos”, na análise do
psicanalista Cláudio Castelo Fi-
lho. “Como no fim da vida,
após tantas privações e sacrifí-
cios, não vou poder fazer como
melhor me aprouver? Como al-
guém se atreve a essa altura da
vida a me dizer o que posso e o
que não posso fazer?”, diz.
Ele acrescenta que alguns in-
divíduos vivem em negação:
“Os idosos costumam ficar em
situações de maior solidão e iso-
lamento social já naturalmen-
te, visto que se aposentam, es-
tão longe das relações de traba-
lho, das amizades, e muitas ve-
zes mal veem os filhos e paren-
tes. Um enclausuramento for-
çado devido à doença que se es-
palha pode parecer intolerável
e a frustração pela falta de con-
tato humano pode tornar-se in-
suportável. Parte-se para a ne-
gação da realidade e opta-se pe-
lo risco. Vi um depoimento de
uma senhora francesa sobre o
que se passava em Paris, antes
do decreto de confinamento ra-
dical, e ela dizia que a depres-
são de ficar em casa era pior do
que o vírus”.
A neuropsicóloga Gisele Ca-
lia explica que há uma espécie
de “configuração cerebral” dife-
rente dessa geração que passou
dos 60 anos: “Nascidos muito
antes da era tecnológica, seus
cérebros foram ‘formatados’
pela e para a vida física, e não
pela virtual. Acostumaram-se a
se motivar por estímulos reais,
produzidos pelo contato físico
com a natureza, com os outros
seres humanos, com os cheiros
e ruídos vindos do exterior,
com o vento no rosto, com o
aperto de mão, com o olho no
olho e com a locomoção a pé,
por exemplo. Obrigá-los a ficar
em casa é tão difícil quanto pe-
dir que um jovem passe um dia
sem acessar qualquer mecanis-
mo virtual”.
Um dos aspectos apontados
por Gisele Calia é a própria per-
cepção dos idosos sobre si. “Se
a autoimagem do idoso de anti-
gamente era a do ‘senhorzinho
de bengala’, hoje em dia, mui-
tos se sentem e se veem como
jovens, atletas, e não como inte-
grando um ‘grupo de risco’. Se
me sinto e me percebo como
tão saudável, como posso me
identificar como integrante do
grupo que será o mais atingido
por uma doença? Assim, posso
sair na rua tal qual meu filho ou
meu neto, pois sou tão ou mais
saudável do que eles”, diz.
Outra situação que vale des-
tacar é que declínios cogniti-
vos leves podem estar presen-
tes nos idosos mais saudáveis
fisicamente, por anos, sem afe-
tar drasticamente a vida autô-
noma, independente, e sem
mostrar sinais óbvios mesmo
para os parentes mais próxi-
mos. “Tais declínios podem ser
manifestados em forma de tei-
mosia, dificuldade para aceitar
opiniões diferentes das suas, re-
sistência exacerbada a mudan-
ças de rotinas e planos, diminui-
ção da capacidade de planeja-
mento e de tomada de deci-
sões. Em uma situação de isola-
mento social imposta, tais de-
clínios podem afetar a capacida-
de de aceitar o que lhe é pedido
e de se organizar para passar
um tempo em quarentena”, en-
fatiza a neuropsicóloga.
ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS
E
m 1978, a ensaísta Susan Son-
tag publicou na revista New
Yorker um ensaio intitulado
Disease as Political Metaphor (Enfer-
midade como Metáfora Política)
no qual ela se concentra no câncer –
àquela época uma mazela fatal, mas
não esquece a bíblica lepra como
castigo divino; a peste bubônica e
outras moléstias contagiosas como
tuberculose e sifões. Cada qual
com a sua etiqueta moral. O interes-
sante, porém, é como ela relembra
como alguns grandes pensadores
relacionaram doença e sociedade.
Tive uma vivência familiar com a
tuberculose, que acometia os apai-
xonados e os que sofriam – como
acentua Sontag – de deficiência
energética. Emagrecer em demasia
(no Brasil, sinal de pobreza) era,
com a tosse seca, um mal incurável e,
eis o estigma: a tuberculose “pegava”
- contagiava.
Um dos meus tios se casou – prova
de um amor honrado – com uma tuber-
culosa. Morreu de um câncer no pul-
mão e eu me pergunto se nas suas ago-
nias ele não teria se juntado a sua ama-
da. Não é por acaso que o livro A Monta-
nha Mágica se passa num sanatório de
tuberculosos – uma nação isolada de
doentes – na qual todos comiam bem
e tinham sua saúde religiosamente vi-
giada. Tal como nos países totalitá-
rios...
O autoritarismo, aprendo com Son-
tag, tal como o poder, isola. Entre nós,
ter poder não significa responsabilida-
de pública solidária e incondicional
prometida ao chamado “povo” – essa
espécie de vírus pobre para muitos de
nós. Pois o poder (um vírus coroado)
é um claro transmissor de corrupção,
coerção, intriga e perversão ideológi-
ca via consanguinidade e o seu equiva-
lente – o companheirismo ideológico.
O empoderamento é uma doença na
qual mentir e enganar são sintomáti-
cos (leia Hannah Arendt). O poder no
Brasil (ou melhor: o poder à brasilei-
ra) ainda não encontrou sua vacina.
Donde a sua onipotente inconsequên-
cia (sou meritocrático, mas quero que
meu filho seja embaixador...) e incurá-
vel condescendência (esse eu conhe-
ço...). Doente, ele corrói vitalidade éti-
ca e rotiniza mentiras, primitivismo e
violências – esses vírus da política.
Se a tuberculose tinha um ar român-
tico, a sífilis (de um outro tio) seria o
preço do erotismo. Um sifilítico pode-
roso e genial, como o herói de Thomas
Mann em O Doutor Fausto (de 1947).
Tem sífilis e faz um pacto com o demô-
nio para ser uma celebridade singular
no mundo. A alegoria com o Hitler do
nacional-socialismo é clara.
As doenças são graduadas. Um res-
friado não estigmatiza como a lepra.
Ao abordar doença e política, Sontag
percorre um caminho conhecido pe-
los filósofos e antropólogos quando
eles sugerem a aversão humana ao
caos e à impessoalidade. A bruxaria
não é uma irracionalidade, é um idio-
ma, como diz Evans-Pritchard, para
contornar infortúnios. Se há o inespe-
rado, a sua personificação denuncia
um mal-estar personalizado. Bergson
menciona um fato crítico: na Primeira
Grande Guerra, feridos por estilhaços
demoravam mais tempo a sarar do
que os atingidos por rifles inimigos.
Neste caso, havia intencionalidade;
no outro, havia um inaceitável acaso.
Não pode haver praga maior do que
o contágio errático num mundo anco-
rado por trocas. Nada se iguala à des-
ventura de enfrentar um inespera-
do e invisível vírus – um assassino
sem rumo – num mundo motivado
a tudo explicar. O coronavírus des-
nuda a nossa onipotência.
A pandemia é o que Marcel
Mauss chamou de “fato social to-
tal”. Um evento que remete a mui-
tas dimensões, rotineiramente li-
das como isoladas (ou polariza-
das), mas que são, como tudo na
vida coletiva, interdependentes.
No caso, a vida e a morte, o despre-
zo (expresso, para nossa repulsa,
pelo presidente Bolsonaro) e a soli-
dariedade.
O vírus revela que temos man-
dões e regras demais que se contra-
dizem. Somos legalistas e especia-
listas em indecisão: escolhemos
não escolher como já disse alhures.
O País não aprende a competir e,
diante de uma doença mundial que
atinge os ditos “desenvolvidos”
(também de quarentena!), enxerga
a contragosto o seu espantoso atra-
so, a sua constrangedora má-fé.
l Em casa
Comparação com
as crianças é ruim,
diz neuropsicóloga
“Um enclausuramento
forçado e a frustração pela
solidão podem tornar-se
insuportáveis”
Cláudio Castelo Filho
PSICANALISTA
“Se a autoimagem do idoso
de antigamente era a do
‘senhorzinho de bengala’,
agora muitos se veem
como jovens, atletas, e não
como integrando um
‘grupo de risco’’’
Gisele Calia
NEUROPSICÓLOGA
lAdriana Souza tem muita difi-
culdade para convencer a avó a
cumprir a quarentena. “Tentei de
tudo: disse que não teria vaga
nos hospitais, falei sobre os sinto-
mas, o sofrimento. Em desespe-
ro e para amedrontar, falei que
ela iria para o hospital e sairia de
lá morta. Não adiantou. Ela dizia:
‘Mas estou bem, não vai aconte-
cer nada, se Deus quiser’. É desa-
nimador”, desabafou.
A neuropsicóloga Gisele Calia
enumera duas sugestões para
convencer um idoso a respeitar
a quarentena. “Nunca compare
um idoso a uma criança. Ele já
se sente desvalorizado, sem au-
toridade e como se estivesse em
segundo plano. Se o idoso for
tratado como uma criança, es-
ses sentimentos de desvalia au-
mentarão e dificultarão ainda
mais que ele venha a aceitar sua
recomendação.”
Outro caminho possível:
estabelecer um diálogo em que
experiências bem-sucedidas
pessoais anteriores dele pos-
sam lembrá-lo como ele foi
corajoso. Torná-lo um persona-
gem ativo pode virar o jogo.
Ele passará de vítima a agente
de resistência. / C.T.
Risco. Diante da solidão e exclusão social, idoso pode partir para a negação da realidade
A nudez do Brasil