Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1008 (2020-04-03)

(Antfer) #1
Sexta-feira,3deabrilde2020 |Valor| 29

MARCIO ARRUDA/AGÊNCIA O GLOBO

culturalehistóricadasociedadebrasileira.Na
opiniãodosociólogoJosédeSouzaMartins,“é
omaioremaisrefinadoretratodoBrasil”.
Essa particularidadefaz do autoruma leitu-
raalémdasfronteirasacadêmicas.Obrigatória
para todosque desejamparticipar do debate
políticocomumabaseintelectualsólida.“Não
éumretratoimpressionista,masumretratori-
gorosamente científico,opr imeiro eainda ra-
romododeconhecerestasociedade”, diz.
ElelembraqueFlorestanseinspirounacon-
cepção do sociólogoalemão Hans Freyer
(1887-1969) de que asociologia é a autocons-
ciênciacientífica da sociedade. A obra de Flo-
restan,continua ocolunista doValor,“é obra
de cientistaerudito, que dominaos métodos
científicos, tantoos métodos técnicos quanto
os métodos lógicos,tanto na pesquisa quanto
na explicação propriamentecientífica. Nada
nela escapa dessecuidado”.Para SouzaMar-
tins, a obra de Florestandifere de quase tudo
que a sociologia brasileira já fez. “A sociologia
dele contrapõeo conhecimentocientífico ao
nossopobreconhecimentodesensocomum.”
A erudição do autoré uma das explicações
parasua “im ortalidade”.“Florestanéuma
ilha de sociologiacercada de literatura por
todosos lados”, escreveu AntonioCandido,


quandoconvidado a prefaciar o livro do
grande amigo. Osdois foram confidentes,
cúmplices intelectuais, companheiros de tra-
balho e mantiveramuma relação de amizade
e proximidade. Formaram-se na Faculdade
de Filosofia da USP na décadade 1940.
“Sempreme impressionaramnele avasti-
dãoevariedade das leituras, bem comoosen-
so artístico; mas, ao mesmotempo, a capaci-
dadedeasuaexperiênciadeleitorefruidorde
arteparaesclarecermelhoroseupensamento
desociólogoepolítico”, escreveuocrítico.
Essa sensibilidadepara equilibrara erudição
eadidáticademaneiraatraentefazdoslivrosde
Florestanumaleiturasemhermetismo.Noatual
momentopolítico, quandotemascomoracis-
mo, diversidade,meioambiente,desigualdade
social,nacionalismo,imperialismo, patriarca-
do,feminismoetantosoutrosfrequentam,sem
cerimônia,as redessociaiseas discussõesfami-
liares,Florestanofereceluz e argumentospara
esse ambientede conflitos,muitasvezesprovo-
cado por deficiênciasna compreensãode cons-
truçõesouconceitossociológicos.
Umadas maioresprovasda vitalidadeda
obra de Florestanéosucessoeditorialdo soció-
logo Jessé Souza,autordo best-seller“A Elite do
Atraso” eum seguidorde sua tradiçãoteórica.

EmsuareleituracríticadosintérpretesdoBrasil,
Souzaapontaas lacunasdeixadaspor Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982), Gilberto
Freyre(1900-1987)e outrospensadorescon-
temporâneosque, segundoele, foramvítimas
de uma visãocolonizada,culturalistaou mera-
menteeconomicista,marcadapor um comple-
xo de inferioridadeintelectual.Florestanfoi o
primeirosociólogo,na opiniãode Souza,que
“avançana questãode refletirsobreareprodu-
çãosimbólicadocapitalismoperiférico”.
Um dos principaislivrosde JesséSouza,“A
ConstruçãoSocialda Subcidadania”(reeditado
pela Leya em 2018),é um diálogocom “A Revo-
luçãoBurguesa”eoutrotítuloimportante,“A
RaléBrasileira:QuemÉeComoVive”(reeditado
pela Contracorrenteem 2018),é um parente
próximode “A Integraçãodo Negrona Socieda-
dedeClasses”,trabalhoreferencialdeFlorestan.
“Elefoi,naverdade,o primeiro cientistasocial
brasileiro,comgrandeformaçãoteórica,aperce-
berasociedadebrasileiraapartirdebaixo,ouse-
ja,comoolhardooprimido”, afirma.“Areedição
desuasobras,nestemomento,étempestiva.”
Eoqueseriaperceberasociedadeapartirde
baixo? Florestan, segundo JesséSouza,colo-
cou asociologia brasileiraemoutro patamar
desofisticação.Asciênciassociaisdeixamadi-
mensãoda “sociologiaespontânea”, da visão
convencionalque interpreta as relaçõesso-
ciais sob o paradigma da intencionalidade in-
dividual ou da herança cultural do tipo “se
meuavôeraportuguês,eutambémsou”.
Florestaninauguraadimensãoda eficácia
institucional.“O comportamentopráticocoti-
dianosó podeser devidamenteexplicadoe
compreendidopormeiodaeficáciadasinstitui-
ções—seusprêmiosecastigosqueconstrangem
ocomportamentodosindivíduosemdadadire-
çãosemqueelesmesmospercebamconsciente-
mente—,enuncapelaaçãointencionaldospró-
priosindivíduospercebidosingenuamenteco-
moautônomosoulivres”,dizJesséSouza.
Foipor conta dessaingenuidade pré-socio-
lógicaque outros intérpretesdo Brasil,de tra-
diçãocolonizada ou economicista, imagina-
ram um Brasil filhode Portugal,ignorando a
grande“in stituição” que marcou nossaori-
gem:aescravidão. Freyre apostouem uma
convivência harmônica. Buarquede Holanda
acreditava que o Brasilcontinuava o mesmo
depois do capitalismo comercial, do Estado
centralizadoedaurbanização.RaimundoFao-
ro (1925-2003) centralizou sua análise no pa-
trimonialismo. Florestan, destaca Jessé Souza,
quebrouessamesmicequesófaziareproduzir
interpretações vulgares parajustificar nossa
estruturasocialenossasdesigualdades.
“Ele é, nestesentido, o grandecontraponto
àtradição elitista, ainda hojehegemônica,
queseconstróicomSergioBuarquedeHolan-

Comemoração de
centenário inclui
reedições pela Editora
Contracorrente das
principais obras de
Florestan, como“A
Revolução Burguesa
no Brasil”, resposta ao
golpede 1964

CANAL UNICO PDF - O JORNALEIRO

Free download pdf