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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2020 Metrópole A
FERNANDO
REINACH
O
que todos gostariam de sa-
ber é o número real de pes-
soas que estão sendo infec-
tadas. Obter esse dado não é sim-
ples curiosidade científica, dele de-
pende a estratégia que adotaremos
para sair do distanciamento social e
da crise econômica. Diversos países
estão iniciando pesquisas para des-
cobrir esse número. No Brasil epide-
miologistas foram financiados para
fazer esse levantamento, mas estão
esbarrando em um problema: a bai-
xa qualidade dos testes rápidos im-
portados pelo governo brasileiro.
Na China, durante a epidemia em
Wuhan, entre todas as pessoas que
testaram positivo, 80% tiveram sin-
tomas leves e puderam ser tratados
em casa. O problema é que somente
foram testadas pessoas com sinto-
mas e já sabemos que existe um nú-
mero grande de pessoas que apre-
sentam sintomas tão leves ou mes-
mo não apresentaram sintomas e se-
quer foram testadas. Essas pessoas
não entraram na estatística dos in-
fectados. Uma possibilidade é que
esse número de pessoas seja muito
baixo e portanto, o número de infec-
tados seja parecido com o número
de testados. Mas pode ser que não
seja esse o caso. Imagine se para cada
testado positivo existam outras dez
pessoas que também foram infecta-
das. Se esse for o caso, em Wuhan não
houve somente os 85 mil infectados já
detectados, mas sim 850 mil. Se esse
número for realmente grande, as taxas
de letalidade são muito menores que
as estimadas, e a doença é muito me-
nos séria do que imaginamos. Além dis-
so, se esse número for grande, fica
mais fácil organizar a saída do isola-
mento, pois o número de pessoas imu-
nes após o pico pode ser muito maior.
No Brasil, onde estamos testando so-
mente os casos sérios, sequer sabemos
a quantidade de casos leves que exis-
tem, quanto mais os casos que passam
desaparecidos, os infectados anôni-
mos. Para descobrir a quantidade total
de infectados, a solução clássica usada
por epidemiologistas é testar uma
amostra da população selecionada ao
acaso. Você vai em uma cidade, esco-
lhe ao acaso mil pessoas e testa todas,
independentemente de terem apresen-
tado sintomas. O objetivo é descobrir
se já possuem anticorpos contra o no-
vo coronavírus. Para isso é necessário
usar um desses testes rápidos, pareci-
dos com os exames de gravidez vendi-
dos em farmácia. Em vez de colocar
umas gotas de urina, é colocada uma
gota de sangue tirada da ponta do de-
do. Se a pessoa tiver o anticorpo, apare-
ce a listrinha colorida. Os que tiverem
os anticorpos seguramente foram in-
fectados, os que não tiverem não fo-
ram infectados. Você pode até pergun-
tar para a pessoa se ela teve algum sin-
toma, mas isso não é o essencial. Feito
isso você extrapola esse número para
toda a população e calcula a fração in-
fectada. É muito parecido com uma
pesquisa de intenção de voto de institu-
tos como Ibope e Datafolha (que pode-
riam ajudar nessa empreitada), mas ao
invés de perguntar em quem a pessoa
vai votar, você pica o dedo e o teste
“pergunta” para a gotícula de sangue
se o indivíduo já teve contato com o
novo coronavírus. Da mesma maneira
que os institutos de pesquisa acertam
as intenções de voto indagando alguns
milhares de pessoas, esse estudo vai
informar a porcentagem da população
que já “viu” o vírus. E se você repetir
esse estudo a cada mês vai saber como
esse número varia ao longo do tempo e
vai poder usar esse dado para planejar
a saída do isolamento.
Esses estudos são fáceis de fazer e
ainda não foram executados pois nos
primeiros meses da pandemia não exis-
tiam exames capazes de detectar se a
pessoa já havia sido infectada. Como
era de se esperar, os primeiros testes
desenvolvidos tinham como objetivo
saber se a pessoa estava infectada. Só
agora testes que detectam os anticor-
pos produzidos após a infecção fica-
ram disponíveis. Por esse motivo so-
mente agora os diferentes países estão
iniciando estudos desse tipo em seus
territórios, se preparando para sair do
isolamento.
No Brasil dois grupos de epidemiolo-
gistas se organizaram para executar es-
tudos dessa natureza. Um deles em Pe-
lotas no Rio Grande do Sul e outro em
São Paulo. O governo incentivou esses
grupos a iniciarem esses levantamen-
tos e prometeu fornecer os testes ne-
cessários. Mas essa semana surgiu
uma barreira difícil de superar. Aparen-
temente, como já foi anunciado pelo
governo federal, os testes importados
que chegaram no Brasil não funcio-
nam como esperado. Eles não detec-
tam os anticorpos em todos os pacien-
tes que sabidamente possuem o anti-
corpo, ou seja, produzem muitos resul-
tados falso negativo.
Falso negativo ocorre quando o tes-
te não detecta o anticorpo em uma pes-
soa que sabidamente possui o anticor-
po. Já o nível de falsos positivo, quan-
do o teste indica a presença de anticor-
pos em pessoas que sabemos por ou-
tros meios que não possuem o anticor-
po, não parece ser tão alto. Ou seja, se
os epidemiologistas usarem esses tes-
tes, uma grande parte das pessoas que
foram infectadas não será identificada
(esse problema, é claro, também afeta
o uso nos hospitais). Se os resultados
falsos negativos forem pouco frequen-
tes, os estatísticos podem corrigir esse
erro na análise, mas se forem altos, co-
mo parece ocorrer nos primeiros tes-
tes importados, não vale a pena ini-
ciar os estudos.
O problema é que a Anvisa, a agên-
cia que atesta a eficácia de remédios
e testes no Brasil não divulgou os
resultados nos quais se baseou para
aprovar a importação desses testes.
Em tempos normais, a Anvisa não
somente investiga os resultados for-
necidos pelos fabricantes, mas tam-
bém refaz esses estudos em labora-
tórios brasileiros antes de liberar a
importação. A suspeita é de que na
pressa o Brasil tenha aprovado e
comprado gato por lebre. Talvez
parte dos testes que estão chegando
ao Brasil seja pouco útil ou mesmo
inútil. O Ministério da Saúde já avi-
sou sobre a limitação dos testes. Lo-
go saberemos a extensão do proble-
ma, pois os hospitais e laboratórios
de análise clínica geralmente vali-
dam os testes antes de começarem a
colocá-los em uso em larga escala.
No meio tempo, esses dois estu-
dos essenciais para termos dados ca-
pazes de nos ajudar a montar a estra-
tégia de relaxamento do distancia-
mento social estão esperando para
serem iniciados. Infelizmente ain-
da vai demorar para descobrirmos
quantos brasileiros realmente es-
tão sendo infectados pelo vírus.
Cabe à Anvisa explicar exatamen-
te o que aconteceu na liberação des-
ses testes rápidos. A esperança é
que os outros testes que estão sen-
do importados sejam de melhor qua-
lidade.
]
É BIÓLOGO
Corrida global por
insumos faz SUS
perder contratos
Estados do Nordeste desistem de fornecimento de itens, em meio à
demanda de produtos hospitalares; indústria cobra licitações ágeis
E-MAIL: [email protected]
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Mateus Vargas / BRASÍLIA
A ofensiva de potências eco-
nômicas, como os Estados
Unidos, no mercado de insu-
mos para saúde tem afetado
encomendas já feitas por ges-
tores do Sistema Único de
Saúde (SUS) e até desestimu-
lado novas compras. O gover-
no do Maranhão desistiu, por
ora, de buscar produtos na
China, principal produtor do
setor. O Estado teve um con-
trato rompido para compra
de 107 respiradores e avalia
que é mais seguro apostar na
produção nacional.
“Arriscar comprar agora é cor-
rer o risco de não ter o produto
ou apenas tê-lo quando tudo is-
so tiver passado. Não adianta. E
ainda corremos o risco de res-
ponder judicialmente por tais
atos”, disse o secretário de Saú-
de do Maranhão, Carlos Lula.
Uma compra do governo da
Bahia de 600 respiradores chi-
neses, que seria distribuída a Es-
tados do Nordeste, também foi
cancelada. O contrato era de R$
42 milhões. “Infelizmente esta-
mos sem uma coordenação na-
cional”, disse o governador Rui
Costa (PT) à TV Aratu.
Para representantes da indús-
tria, além de o governo brasilei-
ro ter demorado para ir ao mer-
cado, a burocracia para com-
pras coloca o País no “fim da
fila”. “Outros países estão indo
lá com seus aviões e buscando a
mercadoria”, disse Paulo Frac-
caro, superintendente da Asso-
ciação Brasileira da Indústria
de Artigos e Equipamentos
Médicos e Odontológicos (Abi-
mo). Ele afirma que há diversos
produtos comprados por em-
presas brasileiros na China blo-
queados, incluindo equipamen-
tos de proteção individual (E-
PIs), respiradores e kits para
testes de diagnóstico. “Os EUA
passaram na frente.”
Segundo Fraccaro, além do
aumento da procura, o custo de
transporte dos produtos da Chi-
na, pago em dólar, aumentou
até 10 vezes durante a pande-
mia. “Se você compra hoje para
buscar em uma semana, o forne-
cedor prefere abrir mão do pedi-
do para vender na hora para
quem está pagando mais.”
O ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta, voltou a
afirmar nesta sexta-feira que po-
de buscar produtos, mas não fa-
lou em datas para. “Nós enviare-
mos aviões caso seja necessá-
rio”, disse. “Nós estamos dialo-
gando com os países no sentido
de ter um mínimo de racionali-
dade neste momento, para po-
dermos achar um ponto de equi-
líbrio”, afirmou o ministro.
Para Fernando Silveira Filho,
presidente executivo da Asso-
ciação Brasileira da Indústria
de Alta Tecnologia de Produtos
para Saúde (Abimed), é difícil
acertar a hora de ir às compras e
o governo tem tomado medidas
certas. “A aceleração da epide-
mia é muito grande. Difícil sa-
ber se resposta foi no tempo cer-
to ou não. Está sendo dada.”
Indústria farmacêutica. Ainda
que países tenham bloqueado
exportações, a indústria de me-
dicamentos do Brasil afirma
que está com produção e esto-
ques regularizados. “A indús-
tria instalada no País tem esto-
que para quatro ou cinco me-
ses, em média”, diz o Sindicato
da Indústria de Produtos Far-
macêuticos (Sindusfarma).
Mas o cenário não é o mesmo
no laboratório Farmanguinhos,
braço da Fiocruz. Segundo o di-
retor da instituição, Jorge Men-
donça, os bloqueios de produ-
tos e limitações impostas pela
covid-19 têm impactos “cada
vez maiores”. “Nas situações lo-
cais e internas, com as dificulda-
des de locomoção de nossos co-
laboradores, por causa das res-
trições de transporte, e os afas-
tamentos médicos, mesmo que
sejam preventivos. Já nos fato-
res externos, nas últimas sema-
nas, as dificuldades têm aumen-
tado, tanto de novas contrata-
ções quanto na regularidade de
embarques, já contratados de
insumos importados, da Ásia e
Europa”, disse.
lO Brasil deverá ter 41 mil ca-
sos de covid-19 até o dia 20, se-
gundo novo levantamento do Nú-
cleo de Operações e Inteligência
em Saúde (Nois), que reúne pes-
quisadores da PUC, da Fiocruz e
do Instituto D’Or. Em um cenário
otimista, o número seria de
35.298. No cenário pessimista, a
evolução seria pior do que a ob-
servada na Itália e na Espanha e
chegaria a 60 mil casos.
Se as medidas de isolamento
forem suspensas ou se a adesão
da população diminuir muito, o
Brasil pode seguir o cenário dos
Estados Unidos, chegando a 267
mil casos. Em todos os relatos, a
epidemia está em crescimento.
No Estado de São Paulo, as proje-
ções para o próximo dia 20 va-
riam de 11.154 a 26.777. No Rio,
a variação seria de 3.156 a 7.576.
O Ministério da Saúde evitou
ontem fazer estimativas sobre
quantos casos de contaminações
prevê atualmente em todo o País.
Mas o secretário executivo da
pasta, João Gabbardo dos Reis,
disse que não acredita que o Bra-
sil chegue a registrar 100 mil óbi-
tos pelo novo coronavírus. /
ROBERTA JANSEN, ANDRÉ BORGES e
JULIA LINDNER
Se medidas de distanciamento
social e redução de deslocamen-
to não entrarem em funciona-
mento ou, se uma vez adotadas,
não surtirem o efeito esperado,
a infecção pode se espalhar rapi-
damente pelo vasto trecho do
litoral entre o Rio Grande do
Sul e a Bahia, onde vive a maior
parte da população. A previsão
resulta de uma nova rodada de
projeções sobre o vírus Sars-
CoV-2, causador da doença co-
vid-19, apresentada em 25 de
março por pesquisadores da
Fundação Oswaldo Cruz (Fio-
cruz) e da Fundação Getulio
Vargas (FGV), ambas no Rio.
Em meados de março, o gru-
po, coordenado pelo físico Mar-
celo Ferreira da Costa Gomes,
especialista em modelos de pro-
pagação de doenças, havia divul-
gado uma projeção de como o
vírus se comportaria em uma fa-
se inicial da epidemia. Agora, o
risco de casos importados de ou-
tros países estabelecerem no-
vos focos de transmissão conti-
nua a existir, mas ganha impor-
tância a dispersão regional, nos
municípios mais conectados
por via terrestre às capitais em
que a transmissão já está estabe-
lecida. Segundo os pesquisado-
res, nesse segundo momento
prevê-se a disseminação para
os municípios litorâneos de
uma faixa que vai de Porto Ale-
gre, no Rio Grande do Sul, a Sal-
vador, na Bahia, e nos municí-
pios vizinhos das capitais na Pa-
raíba, em Pernambuco e no Cea-
rá, além do entorno de Cuiabá,
no Mato Grosso; de Goiânia,
em Goiás; de Brasília, no Distri-
to Federal; e de Foz do Iguaçu,
no Paraná. A dispersão por toda
essa área pode ser mais rápida
ou mais lenta, a depender da
adoção de medidas de distancia-
mento e isolamento social e do
quanto se mostrem eficazes.
Corrida contra o tempo. Nas si-
mulações mais recentes, os pes-
quisadores estimaram o efeito
da restrição de viagens entre
municípios e do distanciamen-
to social para reduzir a dissemi-
nação do vírus. Eles verificaram
que só se consegue retardar de
modo significativo a chegada
do vírus a esses municípios
quando as duas medidas – restri-
ção de deslocamento intermu-
nicipal e diminuição do contato
entre as pessoas – são tomadas
em conjunto. O fator que mais
contribuiu para reduzir a veloci-
dade de disseminação do vírus
foram o distanciamento e o iso-
lamento sociais adotados em ní-
vel local.
Sem distanciamento social,
os primeiros casos surgem em
um município de 5 a 20 dias de-
pois da transmissão sustentada
na capital – o menor prazo ocor-
re quando há uma redução de
30% nas viagens intermunici-
pais e o maior, quando a restri-
ção é de 80%. O tempo aumenta
para 27 a 70 dias quando um ter-
ço da população do município
se isola em casa. / REVISTA FAPESP
Confira informações sobre vacinas. Pág. A14 }
l Ambiente de guerra
Projeção é de que
o País tenha 41 mil
casos até o dia 20
Se isolamento e outras
medidas falharem,
covid-19 pode avançar
pelo vasto trecho do
litoral entre RS e BA
Estudo mostra como
vírus deve se espalhar
nos próximos meses
Testes de baixa qualidade
Estudos que podem ajudar
na saída do isolamento social
esperam para ser iniciados
WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 1/4/ 2020
“Outros países estão indo lá
com seus aviões e buscando
a mercadoria. Não dá para
fazer toda a burocracia de
compra em um ambiente de
guerra.”
Paulo Fraccaro,
SUPERINTENDENTE DA ABIMO
Operação. Avião da FAB transporta insumos médicos de São Paulo para o Recife, medida para conter o avanço da covid-