O Estado de São Paulo (2020-04-04)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2020 Especial H3


Guilherme Sobota


Pelo quarto ano seguido, no
dia 13 de março, chegou aos
serviços de streaming um dis-
co novo do rapper mineiro
Gustavo Pereira Marques, co-
nhecido em todos os rincões
do hip hop, da internet às ruas,
como Djonga. Em 2020, foi
Histórias da Minha Área – no gê-
nero que Djonga opera, as raí-
zes criadas com a região onde
um artista nasceu, a família
que o criou e os amigos que
cercaram seus primeiros de-
senvolvimentos são elementos
fundamentais para a prática es-
tética, mas que encontram na
ética das relações seu valor
mais elevado. Manter-se apega-
do a essa ideia é muitas vezes
o diferencial de um rapper: es-
se disco, portanto, ganha ain-
da mais importância ao mes-
mo tempo que denuncia de ma-
neira incisiva o contínuo assas-
sinato de jovens, principalmen-


te negros, nas periferias de to-
do o Brasil.
Afinal, como ele mesmo avi-
sa aqui: “Você só vai ser o
maior do Brasil depois que for
o maior da sua rua”.
Recapitulando: em 2017, He-
resia já havia colocado Djonga
como um dos jovens destaques
da cena do rap nacional, um ar-
tista então com 22 anos, flow
(o jeito de cantar as rimas) gri-
tado e letras e rimas espertas
para o padrão vigente. No ano
seguinte, O Menino Que Queria
Ser Deus ampliou o repertório
de um artista que já demonstra-
va a virtude de variar a própria
exploração artística, além de
promover outros jovens músi-
cos junto com ele. Em 2019,
veio Ladrão, e o grande estou-
ro: foram cerca de 16 shows
por mês, aparições em diver-
sos festivais em horários de
destaque, entrevistas em todos
os cantos, prêmios.
Em Histórias da Minha Área ,
lançado no momento imediata-
mente anterior à pandemia
chegar de fato ao Brasil, Djon-
ga olha para a origem urbana e

periférica de diversos pontos
de vista. Nas letras, explica
que “Enquanto não houver jus-
tiça pra nós / Juro que pra vo-
cês não vai ter paz”: o discurso
ganha profundidade quando
ele afirma em seguida que “Pa-
rei de pensar em matar, vin-
gança vai ser ficar vivo”, em
Não Sei Rezar.
Em Oto Patamá , referência
clara ao bordão do atacante
Bruno Henrique, do Flamengo,
Djonga canta “olha ali no beco
a cor do que morreu / O raio
caiu de novo no mesmo lugar”,
fazendo um trocadilho com a
própria produção artística para
falar ao mesmo tempo sobre
violência social e racismo.
“Meu alvo nesse disco era fa-
zer a gente não ser mais o al-
vo”, diz Djonga por telefone.
“Dar voz a quem não tem voz
no debate. A galera intelectual
faz isso, tem grana e espaço pa-
ra veicular suas ideias, mas o
debate (sobre racismo e desi-
gualdade social) é sempre o
mesmo. O alvo é colocar o de-
bate na nossa voz.”
Em Gelo , ele chama o carioca

NGC Borges, estrela na inter-
net com o hit AK do Flamengo ,
um dos destaques de uma no-
va vertente do trap brasileiro,
o trap proibidão (o trap é um
gênero do hip hop que abusa
de batidas graves e espaçadas,
e o proibidão é a derivação do
funk que traz assuntos como
sexo e violência sem freios na
linguagem). Borges produz ví-
deos em favelas do Rio, e nos

seus clipes e letras há referên-
cias diretas a violência social.
Na canção com Djonga, ele
diz: “A Glock quando canta
sempre assina mais um hit /
Saudades dos meus manos
que não passaram dos 15”.
Quando Borges se envolveu
nos últimos dias numa “treta”
online com um PM youtuber,
teve dados seus e da sua famí-
lia revelados e recebeu amea-
ças de morte, Djonga tuitou:
“Ainda que não concordem
com o que ele faz, o trampo
dele é sobre realidade, fala so-
bre violência através de arte
assim como os filmes de
Hollywood ou os Cidade de
Deus que vocês curtem”.
Toda essa reflexão perpassa
Histórias da Minha Área. “E se
eu falar da minha área, como
não vou falar de funk?”, se per-
gunta o próprio Djonga. O gê-
nero mais popular das quebra-
das do Brasil é materializado
no disco em diversos momen-
tos, mas especialmente com a
participação de MC Don Juan
na faixa Mania. “Essa parceria
é fundamental para calcificar o

trampo”, diz Djonga, que no
passado já se uniu a outros ar-
tistas do gênero, como MC Ro-
gê, WC no Beat, MC Rebecca e
MC Rick.
“De um modo geral, as preo-
cupações (do rap e do funk)
são as mesmas, mas, claro,
existem especificidades. Co-
mo o assunto é arte, é fácil se
comunicar. A galera do funk
tem um jeito diferente de pro-
duzir. Não tem o costume de
fazer dobra na música, por
exemplo”, explica, falando so-
bre a prática de sobrepor ou-
tra voz ou instrumento a uma
parte previamente gravada.
“O funk é mais intuitivo, eles
fazem mais rápido, é uma dife-
rença que agrega para c* na ho-
ra da produção.”
Entre “papos retos” e cita-
ções diversas, de Dom Quixote
a O Poderoso Chefão , passando
por Cazuza, Raul Seixas, 2Pac,
Harry Potter e a Bíblia, Djonga
monta um quebra-cabeças úni-
co na música brasileira con-
temporânea. No novo disco,
oferece, gentil e incisivo, mais
algumas peças.

Luiz Zanin Oricchio


Imagine uma prisão vertical
com centenas de andares. Em
cada piso, há dois prisioneiros.
No meio, um poço pelo qual
passa um elevador trazendo ali-
mento. Ele para em cada andar
por um tempo determinado,
dois minutos apenas. As pes-
soas comem o que podem. É
proibido armazenar. Os de ci-
ma têm toda a comida à dispo-
sição e podem se empanturrar.
À medida que o elevador des-
ce, vai sobrando cada vez me-
nos. A partir de certo andar, as
pessoas têm de se contentar
com restos. Não fica nada para
os de baixo. Assim é o filme es-
panhol O Poço , um dos mais
acessados na Netflix nos últi-
mos dias.
Como você pode ver, o filme
do estreante em longas-metra-
gens Galder Gaztelu-Urrutia é
uma ficção distópica com ares
de crítica à desigualdade so-
cial. Imagina um dispositivo
um tanto impensável para fa-
lar de algo concreto, que exis-
te em praticamente qualquer
sociedade do mundo contem-


porâneo. Resumindo: enquan-
to uns poucos comem demais,
o resto morre de fome. Não há
equilíbrio.
O projeto tem outras impli-
cações. Veja-se, por exemplo,
o personagem principal, a par-
tir do qual a trama se desenvol-
ve, Goreng (Ivan Massagué).
Como cada prisioneiro tem o
direito de levar consigo um ob-
jeto do mundo exterior, ele op-
tou por um volume do roman-
ce Dom Quixote , de Cervantes.
Goreng tem por companheiro
de cela um homem mais velho,
Trimagasi (Zorion Eguileor).
Experiente, Trimagasi esco-
lheu levar consigo uma faca de
guerra, bem afiada. Num am-
biente desses, o que vale mais,
cultura literária ou uma boa ar-
ma branca?
Há outros detalhes. A cada
mês, os prisioneiros trocam de
parceiros e de andar, aleatoria-
mente. Podem subir ou des-

cer. Na mudança, podem en-
contrar um companheiro me-
lhor ou um psicopata.
A história se repete num ri-
tual sádico diário. São poucas
as variações, mas elas existem
porque a trama tem de andar.
O recado está dado desde o
início: o dispositivo é cruel e
não se pode esperar piedade,
humanismo ou compreensão
de quem está a ele submetido.
Não há diálogo. Os de cima
não respondem. Inútil falar
com os de baixo, porque são
inferiores, ao menos neste
mês. O Poço oferece-se com

uma lente ampliada da socie-
dade contemporânea, na qual
a solidariedade e o comporta-
mento de grupo foram aboli-
dos em nome de um individua-
lismo feroz.
Dura é a maneira como este
teorema é demonstrado. A fil-
magem é, compreensivelmen-
te, claustrofóbica, já que am-
bientada numa prisão. A repe-
tição dos “banquetes” asque-
rosos produz repulsa. Cenas
explícitas de violência e cani-
balismo não ajudam no clima.
O filme é francamente desa-
gradável.

Bem, há obras desagradáveis
que são importantes. Salò , de
Pier Paolo Pasolini, não é ne-
nhum refresco para se ver.
Mas foi a maneira encontrada
por ele de, ao fazer uma releitu-
ra de Sade, sugerir o renasci-
mento do fascismo na Itália do
início dos anos 1970. A Comi-
lança (1973), de Marco Ferreri,
também não é um piquenique
de delicatessen, mas se coloca
como crítica feroz à voracida-
de da sociedade de consumo.
Já O Poço parece uma alego-
ria um tanto ingênua da socie-
dade de classes do século 21.

Tem nos personagens “maus”,
como o realista Trimagasi,
aquele que fará qualquer coisa
para sobreviver. Inclusive de-
vorar um companheiro de ce-
la. Há outras figuras, como a
mulher que tenta encontrar
sua filha pequena, perdida no
labirinto da prisão. Outra, Imo-
guiri (Antonia San Juan), pro-
cura conscientizar a turma do
andar de baixo que o alimento
será suficiente para todos caso
cada um coma apenas o indis-
pensável. E, sim, o protagonis-
ta Goreng que, talvez motiva-
do por sua leitura favorita, ten-
tará se rebelar contra os moi-
nhos de vento do “sistema” e
fazê-lo implodir.
Tudo se resume a essa alego-
ria bastante pesada de um
mundo em que “o homem é o
lobo do homem”, segundo a
frase famosa de Thomas Hob-
bes em seu clássico Leviatã.
Um salve-se quem puder entre
os de cima e que os de baixo
devorem-se entre eles. Será as-
sim enquanto não se mudar o
“sistema”.
O diretor leva essa fábula ao
limite, sem qualquer sutileza,
apelando para um horror gore
que nada acrescenta à sua in-
tenção de análise. Mais que
uma compreensão de estrutu-
ra, busca ressonância nos im-
pulsos mais sádicos do públi-
co. É pouco para hora e meia
de náusea.

‘O POÇO’ É FICÇÃO DISTÓPICA SEM TALENTO


Música*


Comilança. Os do andar de cima fartam-se em comer; aos dos mais baixos, sobram restos

l Debate

l Pálida alegoria

Caderno 2


Djonga, rapper

NILTON FUKUDA/ESTADÃO

RETRATOS DA RETRATOS DA


VIOLÊNCIA NA VIOLÊNCIA NA


PERIFERIAPERIFERIA


Em novo disco, músico Em novo disco, músico


denuncia o genocídio denuncia o genocídio


negro na sociedadenegro na sociedade


NETFLIX

“Meu alvo nesse disco era
fazer a gente não ser mais o
alvo. Dar voz a quem não
tem voz no debate. A galera
intelectual faz isso, tem
grana e espaço para veicular
suas ideias, mas o debate
(sobre racismo e
desigualdade social) é
sempre o mesmo. O alvo é
colocar o debate na nossa
voz.”

Djonga
RAPPER E AUTOR DO DISCO ‘HISTÓRIAS
DA MINHA ÁREA’ (2020)

“Tudo se resume a uma
alegoria bastante pesada de
um mundo em que “o
homem é o lobo do
homem”, segundo a frase
famosa de Thomas Hobbes
em seu clássico Leviatã. Um
salve-se quem puder entre
os de cima e que os de baixo
se devorem entre eles”

Longa do espanhol


Galder Gaztelu-Urrutia,


disponível na Netflix,


é desagradável, mas


sem importância

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