O Estado de São Paulo (2020-04-04)

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A8 Internacional SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Demanda dos EUA


por máscaras cria


atritos com aliados


Canadá e Alemanha reclamam de carregamentos de máscaras


retidos pelo governo americano, que tenta suprir mercado interno


Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON


A corrida do governo america-
no para obter equipamentos
médicos para o combate à
pandemia do novo coronaví-
rus colocou os EUA em rota
de colisão com países aliados.
Canadá e Alemanha reclama-
ram ontem de ações dos ame-


ricanos para barrar a exporta-
ção de máscaras e tomar res-
piradores inicialmente solici-
tados por outros países.
A falta de máscaras e equipa-
mentos de proteção tem sido
um problema crítico em todos
os países que se tornaram epi-
centro da pandemia, como é o
caso dos EUA. Luvas e másca-
ras adequadas são usadas em

larga escala, pois devem ser des-
cartadas com frequência. Sem
elas, os profissionais que traba-
lham na linha de frente do trata-
mento acabam contaminados.
Já os respiradores são essen-
ciais para pacientes graves.
Ontem, Canadá e Alemanha
se somaram a outros países que
já vinham alertando para a po-
lítica desesperada do governo

de Donald Trump para suprir a
demanda interna. O presidente
invocou a Lei de Proteção de De-
fesa para fazer com que a 3M,
uma das maiores fabricantes de
máscaras do mundo, aumente a
produção e suspenda as expor-
tações, que têm como destino o
Canadá e a América Latina.
Ontem, a própria companhia
divulgou um comunicado no
qual alerta para as consequên-
cias. “Há significativas implica-
ções humanitárias em cessar o
fornecimento para profissio-
nais de saúde do Canadá e da
América Latina, onde somos
um fornecedor crítico. Além dis-
so, interromper a exportação,
provavelmente, levaria outros
países a retaliar. Se isso aconte-
cer, o número de equipamentos
disponíveis para os EUA dimi-
nuiria. É o contrário do que bus-
camos”, alertou a empresa.
O primeiro-ministro do Cana-
dá, Justin Trudeau, qualificou
como um “erro” a decisão dos
EUA de limitar as exportações
de equipamentos médicos. “É
um erro criar bloqueios ou redu-
zir a quantidade de comércio de

bens e serviços essenciais, inclu-
indo os médicos, de ambos os
lados da nossa fronteira”, disse
Trudeau. “A 3M indicou que é
importante continuar as expor-
tações para países como o Cana-
dá.”
Ontem, autoridades alemãs
acusaram os EUA de praticar
“pirataria moderna” e adotar
práticas do “Velho Oeste” de-

pois que uma carga de máscaras
N95 foi retida na Tailândia. A
Alemanha afirma que 200 mil
máscaras da 3M seriam destina-
das a policiais do país. “Esta não
é a forma de tratar os parceiros
transatlânticos. Mesmo em tem-
pos de crise global, não se deve
adotar métodos do Velho Oes-
te”, afirmou o ministro alemão
do Interior, Andreas Geisel.
Sem citar diretamente os
EUA, o ministro da Saúde do
Brasil, Luiz Henrique Mandet-
ta, também criticou ontem a de-
cisão americana de concentrar
as compras de insumos emer-
genciais. “Estamos vendo reten-
ção de produções globais de
máscaras. O que antes era glo-
bal, agora é só pra atender ‘o
meu país’”, disse o brasileiro.

Queixas. As reclamações am-
pliam a lista dos países insatis-
feitos com os americanos. A
francesa Valérie Pécresse, presi-
dente da região de Île-de-Fran-
ce, disse ontem que máscaras
que foram enviadas por empre-
sas da China aos EUA tinham
inicialmente sido vendidas à
França.
“Perdemos um pedido para
os americanos, que nos supera-
ram em uma remessa que tínha-
mos feito”, disse Pécresse.
“Eles ofereceram três vezes o
preço e pagaram adiantado. Eu
não consigo fazer isso.”
Trump tem sido pressionado
para socorrer Estados e municí-
pios com respiradores e equipa-
mentos de proteção individual
para os profissionais de saúde,
conforme o número de infecta-
dos cresce nos EUA.
No dia 15, quando deve ocor-
rer o pico das internações hospi-
talares, segundo o modelo esta-
tístico usado pela Casa Branca,
os EUA devem precisar de 31,
mil respiradores mecânicos.
Atualmente, há apenas 12,7 mil
no estoque de emergência do
governo federal.
Reportagem do New York Ti-
mes mostrou, no entanto, que
nem todos estão em condições
de uso por problemas na manu-
tenção. Trump tem dito que os
estoques serão destinados aos
Estados conforme necessida-
de. O governo de Nova York, on-
de está concentrada a metade
dos casos do país, disse que o
Estado precisará de milhões de
máscaras até domingo.

N


o mês passado, os 35
mil moradores de
Kiryas Joel, uma vila
nova-iorquina a cerca de
uma hora de carro de Manhat-
tan, começaram a ouvir histó-
rias sobre um tratamento
promissor para a covid-19.
A fonte era Vladimir Ze-
lenko, de 46 anos, um médico
de família com consultório

nas redondezas. Desde o início
de março, ele tratou pacientes
com sintomas de coronavírus
com um coquetel composto de
um remédio contra a malária, a
hidroxicloroquina, o antibiótico
azitromicina e sulfato de zinco.
Depois de testar as drogas em
centenas de pessoas, algumas
das quais tinham apenas sinto-
mas leves, Zelenko afirmou que

100% deles se curaram sem in-
ternações. “Estou vendo resul-
tados positivos tremendos”, dis-
se, em um vídeo de 21 de março,
dirigido ao presidente Donald
Trump, que depois foi publica-
do no YouTube e no Facebook.
O tratamento chegou em um
momento útil para o presidente
e seus apoiadores. A Fox News
chamou Zelenko para uma en-
trevista. Mark Meadows, novo
chefe de gabinete da Casa Bran-
ca, ligou para ele. Rudolph Giu-
liani, advogado pessoal de
Trump, elogiou o doutor.
De sua casa, onde ele se iso-
lou, Zelenko descreveu uma se-
mana cheia de telefonemas de

autoridades de saúde de países
como Israel, Ucrânia e Rússia.
“É um momento surreal.”
A comunidade científica rea-
giu. “Qualquer um que disser
que esses medicamentos fun-
cionam não se baseia na ciên-
cia”, disse David Juurlink, da di-
visão de farmacologia da Uni-
versidade de Toronto. As em-
presas de tecnologia também.
Postagens no Twitter, uma de-
las de Giuliani, e no Facebook
sobre o “coquetel milagroso” fo-
ram apagadas. Zelenko disse
que entende a necessidade de
ensaios clínicos, mas argumen-
ta. “Testes levam tempo, e isso
é coisa que não temos.” / NYT

NOVA YORK


Quando o navio-hospital USNS
Comfort, da Marinha america-
na, chegou ao porto de Nova
York na segunda-feira, uma ver-
dadeira multidão esqueceu por
instantes das restrições do dis-
tanciamento social e se amon-
toou ao longo do lado oeste de
Manhattan para ver sua chega-
da. Mas, na quinta-feira, o enor-
me navio branco com mil leitos,
que as autoridades haviam pro-
metido que traria socorro a
uma cidade à beira do abismo,
estava quase vazio, enfurecen-
do executivos de hospitais.
Apenas 20 pacientes foram
transferidos para o navio, disse-
ram autoridades, enquanto os


hospitais de Nova York lutam
para encontrar espaço para os
milhares de infectados pelo no-
vo coronavírus.
O Comfort foi enviado a Nova
York para aliviar a pressão nas
unidades e tratar pessoas com
outras doenças. Mas um emara-
nhado de protocolos militares e
obstáculos burocráticos impedi-
ram o navio de aceitar muitos
pacientes. As mil camas não es-
tão sendo utilizadas, assim co-
mo suas 12 salas de cirurgia, e
sua tripulação de 1,2 mil médi-
cos e enfermeiros militares está
ociosa quase todo o tempo.
“Vou ser franco, isso é uma
piada”, disse Michael Dowling,
chefe da Northwell Health,
maior sistema hospitalar de No-
va York. “Todos podem dizer:
‘Obrigado por montar esses lu-
gares maravilhosos’. Mas esta-
mos em uma crise aqui, em um
campo de batalha, e não pode-
mos demorar para atender os
pacientes”, disse ele ao New
York Times.

O caso não é único. Outro na-
vio-hospital da Marinha, o USA
Mercy, ancorado em Los Ange-
les, recebeu um total de 15 pa-
cientes. Além de suas rígidas re-
gras que impedem pessoas in-
fectadas com o vírus de embar-
car, a Marinha também rejeita

tratar uma série de outras doen-
ças. As diretrizes divulgadas
aos hospitais incluíram uma lis-
ta de 49 condições médicas que
impediriam um paciente de ser
internado no navio.
Ambulâncias não podem le-
var os pacientes diretamente

ao Comfort. Primeiro, eles de-
vem ser levados para um hospi-
tal para uma longa avaliação –
incluindo teste para o vírus –
para finalmente serem interna-
dos no navio.
Os administradores de hospi-
tais de Nova York estão exaspe-
rados com os atrasos. Dowling
disse que teve de adaptar qual-
quer espaço não utilizado, inclu-
indo lobbies e salas de conferên-
cias, em enfermarias. Suas insta-
lações agora abrigam 2,8 mil pa-
cientes com covid-19. Cerca de
25% deles estão em condições
graves, em UTIs.

Os hospitais estão lotados.
Os pacientes morrem nos corre-
dores antes mesmo de serem en-
tubados. Médicos e enfermei-
ros, que tiveram de usar o mes-
mo equipamento de proteção
repetidamente, estão ficando
doentes. Tem tanta gente mor-
rendo que a cidade está ficando
sem sacos de cadáveres.
Como a maioria dos nova-ior-
quinos se isolou em suas casas,
há menos lesões por acidentes
de carro, tiros e acidentes de
construção, que exigiriam aten-
dimento de emergência. Por
fim, Dowling e outros disseram
que, se o Comfort se recusar a
atender pacientes com covid-
19, haverá poucos pacientes a se-
rem enviados.
“Dada a disseminação da
doença em Nova York, dividir
os pacientes entre os que têm
coronavírus e aqueles que não
têm é inútil”, disse. A solução,
para Dowling e outros epide-
miologistas, é abrir o Comfort
para pacientes com covid-19.
“É ridículo. Se não vai nos aju-
dar com as pessoas com quem
precisamos de ajuda, qual é o
objetivo?”, questionou. / NYT

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


O FALSO PROFETA


DOS REPUBLICANOS


l Guerra das máscaras

l Ociosidade

Navio com mil leitos enviado a NY tem só 20 pacientes


BRYAN DERBALLA/THE NEW YORK TIMES–30/3/

Médico. Vladimir Zelenko e seu ‘tratamento promissor’

‘Coquetel milagroso’

Médico promete cura e vira referência de Trump


“É um erro criar bloqueios
ou reduzir a quantidade de
comércio de bens e serviços
essenciais, incluindo os
médicos, de ambos os lados
da nossa fronteira”
Justin Trudeau
PRIMEIRO-MINISTRO DO CANADÁ

“Esta não é a forma de
tratar os parceiros
transatlânticos. Mesmo em
tempos de crise global, não
se deve adotar métodos do
Velho Oeste”
Andreas Geisel
MINISTRO DO INTERIOR DA ALEMANHA

Pandemia. Baús refrigerados que servirão como necrotério provisório para as vítimas do coronavírus, em Nova York: perspectivas sombrias para a cidade


JUSTIN LANE / EPA / EFE

CHANG W. LEE/THE NEW YORK TIMES–30/3/

20
é a quantidade de pacientes
internados no navio-hospital
USNS Comfort, que atracou em
Nova York na segunda-feira.
Cidade tem quase 60 mil
pessoas infectadas

Proposta. Médicos querem que o Comfort receba infectados

Embarcação deveria


receber pacientes com


outras doenças que não a


covid-19, mas burocracia


impede internações

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