O Estado de São Paulo (2020-04-05)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 Especial H3


Giovanna Wolf


Quarentena não é férias, mas
com crianças e adolescentes
em casa, é natural que eles re-
corram principalmente aos ga-
mes em busca de entretenimen-
to. É um efeito já sentido pela
indústria de jogos globalmente:
em março, com vários países
em isolamento por causa da
pandemia do novo coronaví-
rus, a plataforma americana
Steam, uma das maiores lojas
online de games para computa-
dores do mundo, atingiu o re-
corde de 20 milhões de jogado-
res no serviço.
Desde que as aulas presen-
ciais na escola foram cancela-
das, Arthur Ribeiro, de 12 anos,
tem passado mais tempo na
frente de games em sua casa em
São Paulo. “Durante o dia preci-
so fazer bastante lição da esco-
la, mas à noite estou passando a
madrugada toda jogando”, diz o
garoto, que só tem o hábito de
jogar nessa intensidade duran-
te as férias. “Agora na quarente-
na é um jeito de ajudar a passar
o tempo e evitar o tédio.”
Na visão de Francisco Tupy,
professor de Tecnologia Educa-
cional, os games acabam sendo
um recurso na quarentena para
a distração. “É uma atividade
imersiva que muitas vezes aca-
ba sendo mais atrativa do que a
realidade”, afirma.
Especialistas alertam, entre-


tanto, que os pais precisam ter
alguns cuidados para que os
adolescentes não joguem exces-
sivamente durante o isolamen-
to: orienta-se que se estabeleça
um diálogo com os filhos para

que seja feito uso equilibrado.
Além disso, algumas ques-
tões nos games merecem aten-
ção. Uma delas é a compra de
recursos com cartão de crédito


  • em muitos jogos, são oferta-
    das moedinhas que ajudam no
    desempenho no game, por
    exemplo. Os problemas aqui po-
    dem ser vários: as crianças po-
    dem ter um estímulo de consu-
    mo exagerado, podem usar de-
    senfreadamente o cartão de
    crédito dos pais com o objetivo
    de ganhar no jogo e até fazer
    compras por engano se o núme-
    ro do cartão estiver cadastrado
    em aplicativos.
    Tupy orienta que esse risco
    pode ser uma oportunidade pa-
    ra ensinar educação financeira
    aos filhos. “As crianças que des-
    de cedo forem ensinadas sobre


esse tipo de sistema estarão
mais preparadas para o futuro
lá fora, que já lida muito com
dinheiro virtual, como as bitco-
ins”, diz.
Outro problema é a quantida-
de de anúncios em alguns jogos.
“Muitas vezes os jogos gratui-
tos acabam funcionando como
uma vitrine”, explica André Pa-
se, professor de Comunicação
Digital da PUC-RS. Para não ex-
por crianças a esse tipo de con-
teúdo, especialistas orientam
que pais avaliem comprar o jo-
go ou então pagar serviços de
assinatura de games.
É importante também que a
família sempre verifique a clas-
sificação indicativa dos jogos
porque, além do nível de dificul-
dade, games têm enredos que
em alguns casos podem ser ina-

dequados para determina-
das idades.

Lúdico. Esses riscos, contu-
do, não são motivo para ex-
cluir totalmente os games da
rotina dos adolescentes. O
professor André Pase dá uma
dica para aproveitar os bene-
fícios de jogos nesta quaren-
tena: “Os que exigem exercí-
cios são uma boa opção ago-
ra, como o Just Dance e os
jogos que usam o sensor de
movimentos Kinect. É legal
também buscar games multi-
player, em que o jogador po-
de interagir virtualmente
com amigos”, sugere.
O pai das youtubers infan-
tis Laurinha e Helena, de 7 e 4
anos, respectivamente, resol-
veu tirar o Kinect do armá-
rio. “Ele estava guardado e as
meninas não usavam fazia
tempo. Voltamos a usar ago-
ra no confinamento, princi-
palmente quando o dia está
chuvoso e elas não podem
correr no quintal. É uma for-
ma de as crianças se exercita-
rem em casa”, conta Júlio Cu-
nha Júnior.
As irmãs, que têm o canal
Clubinho da Laura no YouTu-
be, jogam com o Kinect no
console Xbox cerca de uma
hora por dia, variando entre
games como vôlei, futebol e
boliche. “A Laurinha chega a
suar jogando”, diz o pai.

APPS DEIXAM JOVENS


‘PERTO’ DOS AMIGOS


O POLÊMICO


GAME DA


PANDEMIA


l Lúdico, mas cuidado

Renato Vieira


Laura Kotscho tinha tudo pre-
parado para a chegada de seus 17
anos, em 27 de março. Ia fazer
uma festa para 40 convidados.
Por causa do novo coronavírus,
precisou cancelar a comemora-
ção. Mas ela não ficou longe dos
amigos. À 0h do dia de seu ani-
versário, eles celebraram com
Laura a nova idade da estudante
em videochamada de celular. En-
tre o riso da alegria e o choro por
enfrentar uma situação atípica,
ela se sentiu perto das pessoas
de que mais gosta num momen-
to em que a ordem é se afastar.


Adolescentes têm adotado as
videochamadas como meio de
ficar perto da família e dos cole-
gas de escola. Nas ligações, fei-
tas por meio de aplicativos co-
mo WhatsApp, Face Time e
Houseparty – que enfrenta acu-
sações de roubo de dados, mas
negou pelo Twitter que seu siste-
ma tenha sido invadido –, os jo-
vens conversam sobre temas do
momento e tiram dúvidas sobre
questões da escola. Para os pais,
é um meio saudável de manter
contato com quem é próximo
dos filhos.
A mãe de Laura, a jornalista e
apresentadora do programa da

TV Cultura Papo de Mãe , Maria-
na Kotscho, de 47 anos, conta
que está deixando a filha ficar
mais tempo no celular conver-
sando com os amigos. “Para os
adolescentes é um momento
bem sofrido. A convivência é im-
portante e a falta dela pode fa-
zer mal.” Laura conta que, ape-
sar de passar bastante tempo
online, queria estar com os cole-
gas pessoalmente e espera que
o isolamento termine no fim de
abril. “Não estou aguentando fi-
car duas semanas em casa, um
mês vai ser o máximo.”
A empresária Mariana Mariut-
ti, de 44 anos, afirma que as vi-
deochamadas têm sido uma boa
companhia para as filhas Clara,
de 15 anos, e Helena, de 14, que
ficam online praticamente o dia
todo. Ela conta que a escola está
passando muitos conteúdos e

elas aproveitam as ligações para
tirar dúvidas com colegas. Hele-
na também baixou no celular o
jogo de tabuleiro Ludo King, e
no tempo livre ela e as amigas se
juntam em partidas online.
“Meu tempo de tela aumentou
muito e minha mãe me dá umas
broncas. Mas acho que, para o
que estamos passando, meu
tempo está na média.” Recente-
mente, a estudante promoveu
uma festinha virtual para uma
amiga. Ligou para ela, acendeu
uma vela, colocou em um bolo e
cantou parabéns.
José Victor Roling, de 15 anos,
e seus amigos conversam sobre
esportes. Nas videochamadas,
os assuntos giram em torno da
suspensão dos jogos da NBA, a
liga de basquete americana, e da
Champions League, a Liga dos
Campeões da Uefa, por tempo

indeterminado. A turma de Ro-
ling também se reúne virtual-
mente no modo online do video-
game Playstation. A mãe dele, a
artesã Cristiane Roling, de 46

anos, conta que é a favor da co-
municação do filho, mas que é
preciso exercer certo controle.
“As redes sociais são extrema-
mente positivas quando a gente
sabe usar. Os jovens precisam in-
teragir. Mas a gente tem de cui-
dar, não pode ficar o dia inteiro.”
Mãe da estudante Clara
Zerwes, de 15 anos, a administra-
dora Luciana, de 47, incentiva o
uso responsável do celular. Ela
conta que a filha tem utilizado o
ambiente online para conver-
sar com os amigos sobre as ques-
tões da escola. Durante as aulas
virtuais, ela está em videocha-
mada com as amigas. “Meu foco
é no estudo, mas a gente tam-
bém conversa sobre livros,
séries de TV e o que estamos
fazendo. Fazemos trabalhos
em grupo e isso facilita a comu-
nicação”, conta Clara.

Criado em 2012, o jogo Plague
Inc ganhou grande popularida-
de internacional em 2020. O mo-
tivo? O novo coronavírus. O ga-
me, que permite ao jogador
criar sua própria doença e espa-
lhá-la pelo mundo, tornou-se
em janeiro o jogo mais popular
da loja de aplicativos App Store,
da Apple, na China.
O sucesso, porém, tem gera-
do polêmica: no final de feve-
reiro, após recorde de down-
loads, o aplicativo foi retirado
da App Store no país asiático –
de acordo com a Ndemic Crea-
tions, empresa que desenvolve
o jogo, a remoção se deve à deci-
são de reguladores locais, que
alegaram que o Plague Inc ti-
nha conteúdo ilegal, sem dar
mais detalhes. Enquanto isso,
em artigos publicados em revis-
tas como a Science e a Lancet ,
epidemiologistas já defende-
ram que jogos como o Plague
Inc podem ensinar a popula-
ção como funciona a dissemi-
nação de doenças. O Centro de
Controle de Prevenção de
Doenças (CDC) dos EUA tam-
bém chegou a elogiar o jogo.
O analista Daniel Ahmad, da
empresa de pesquisa Niko Part-
ners, que estuda o mercado de
games asiático, deu um palpite
em sua conta no Twitter sobre
o motivo da remoção do jogo
pelo governo chinês. Para ele, a
medida pode estar relacionada
a uma ferramenta do Plague
Inc, lançada em dezembro, que
permitia que jogadores crias-
sem fake news para ajudar na
disseminação da doença. “A
China proíbe notícias falsas
em videogames, especialmen-
te informações confidenciais
em torno do governo e autori-
dades”, disse Ahmad na rede
social à época da remoção do
app. Especialistas apontam
que o país asiático tem regras
bastante restritas de censura
na internet.
Na visão de Francisco Tupy,
professor de Tecnologia Educa-
cional, o Plague Inc não tem um
caráter negativo. “A linguagem
do game deixa claro que se trata
de uma simulação. E os elemen-
tos do jogo ensinam como se dá
a disseminação de doença e fa-
zem o jogador entender a impor-
tância de evitar aglomerações e
de lavar as mãos, por exemplo.
Não acho que quem joga vá que-
rer ser um vírus e destruir o
mundo”, afirma. Entretanto,
Tupy destaca que, como qual-
quer outro game, crianças e ado-
lescentes precisam ter o uso me-
diado se forem jogar.

Nova abordagem. Para evitar
mais problemas, os criadores
do Plague Inc anunciaram na se-
mana passada uma nova atuali-
zação do jogo. Ela incentiva o
jogador a salvar o mundo de
uma pandemia. A Ndemic Crea-
tions, desenvolvedora do jogo,
também doou US$ 250 mil para
ajudar no combate à covid-19.
“Oito anos atrás, eu nunca
imaginei que o mundo real se
pareceria com uma partida de
Plague Inc”, disse James Vaug-
han, um dos criadores do game,
em comunicado. / G.W.

Filhos em casa*


RECORDE DE VIDEOGAMES


JOGO NA TELA


MAÍSA RIBEIRO/ACERVO PESSOAL

Acesso aos eletrônicos cresce durante isolamento; pode ser educativo ou prejudicial à criança


Polêmico. Em Plague Inc, jogador cria e espalha doença: game foi vetado na China

REPRODUÇÃO

“É uma atividade imersiva
que muitas vezes
acaba sendo mais
atrativa do que
a realidade”
Francisco Tupy
PROFESSOR DE TECNOLOGIA

“Os jogos gratuitos
funcionam como
uma vitrine”
André Pase
PROFESSOR DE COMUNICAÇÃO DIGITAL

Grudado.
Arthur, de
12 anos,
às vezes
passa a
madrugada
jogando

MARIANA KOTSCHO/ACERVO PESSOAL

Festa. Laura comemorou
aniversário com os colegas

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