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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 2020 A
Internacional
Reino Unido tem recorde de mortos;
Boris Johnson recebe oxigênio na UTI
ANDY RAIN / EFE
Crise. Britânico lê notícias sobre pandemia; Johnson não levou vírus a sério no começo
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
LONDRES
O Reino Unido registrou on-
tem um recorde de 786 mor-
tes e 3,6 mil novos casos de co-
ronavírus em 24 horas, dados
que mostram que a pandemia
vem se acelerando no país. A
síntese da calamidade é a si-
tuação do primeiro-ministro
Boris Johnson, que ocupa um
quarto de UTI no Hospital St.
Thomas, em Londres. O gover-
no britânico disse que ele rece-
beu oxigênio durante o dia,
mas garante que Johnson res-
pira sem a ajuda de aparelhos.
O modelo estatístico do Insti-
tute for Health Metrics and Eva-
luation (IHME), centro de pes-
quisa da Universidade de
Washington, que tem sido usa-
do pela Casa Branca e vários go-
vernos do mundo, prevê que o
Reino Unido será o país mais
afetado da Europa e terá 40%
do total de mortes no continen-
te, podendo chegar a 66 mil em
agosto – com um pico de até 3
mil óbitos por dia, com base no
avanço da doença no início da
pandemia.
O Reino Unido atingiria o ápi-
ce do surto no dia 17, segundo o
IHME, quando o país precisaria
de pelo menos 102 mil leitos de
hospital – o sistema de saúde
britânico tem apenas 18 mil dis-
poníveis. O país também não te-
rá vagas de UTI e respiradores
suficientes para todos, segundo
os dados da Universidade de
Washington.
Muitos analistas britânicos,
porém, preferem adotar o mo-
delo do Imperial College, de
Londres, que mostra um cená-
rio menos catastrófico, de um
mínimo de 20 mil mortos, con-
tanto que o governo mantenha
as duras medidas restritivas.
“O modelo da IHME não se apli-
ca ao Reino Unido”, disse Neil
Ferguson, professor do Impe-
rial College, responsável pelo
estudo que convenceu John-
son a declarar quarentena no
país, no dia 23.
O premiê, que foi diagnostica-
do com coronavírus há duas se-
manas, permanece na UTI.
Os médicos disseram que ele
não tem pneumonia, está está-
vel e respira sem a ajuda de apa-
relhos. “Ele vem recebendo o
tratamento-padrão de oxigênio
e respirando sem nenhuma ou-
tra ajuda”, disse um porta-voz
do governo.
O primeiro-ministro, de 55
anos, foi internado no domin-
go para ser submetido a exa-
mes. Na segunda-feira, seu es-
tado de saúde se agravou e ele
foi transferido para a UTI. A no-
tícia provocou comoção no Rei-
no Unido, entre governistas e
opositores. Com Johnson fora
de combate, o governo passou
a ser liderado pelo chanceler
Dominic Raab.
Há um mês, Johnson aborda-
va a crise do coronavírus de ma-
neira descontraída. Em uma en-
trevista coletiva, em 3 de março,
ele se gabou de ter “apertado a
mão de todos” depois de visitar
um hospital onde 19 pacientes
estavam sendo tratados com co-
vid-19 – e garantiu que preten-
dia continuar fazendo isso.
Dois dias depois, o Reino Uni-
do anunciou sua primeira mor-
te. Foi o que bastou para John-
son, no dia 12, chamar a pande-
mia de “a pior crise de saúde pú-
blica em uma geração” e alertar
para a possibilidade de que mui-
tos britânicos perderiam paren-
tes. Ainda assim, a estratégia di-
vergia das medidas radicais ado-
tadas por outros países da Euro-
pa, onde o confinamento já esta-
va em vigor.
Aos jornalistas, Johnson repe-
tia sua recomendação de lavar
bem as mãos “durante o tempo
necessário para cantar Para-
béns Pra Você duas vezes”. Para
os idosos, acima dos 70 anos,
mais vulneráveis ao coronaví-
rus, ele simplesmente desacon-
selhava ir a um cruzeiro.
A estratégia de Johnson era
atingir a chamada “imunidade
coletiva”, quando a maioria dos
britânicos já teria contraído o
vírus e estaria imune à doença.
Mas, diante das críticas crescen-
tes e especialmente após o estu-
do do Imperial College, ele mu-
dou de opinião – os dados pre-
viam 250 mil mortos sem medi-
das de distanciamento e 20 mil
com quarentena rígida.
Devagar. O isolamento, no en-
tanto, aconteceu em câmera
lenta. No dia 16, Johnson pediu
à população que evitasse conta-
to social “não essencial”, via-
gens desnecessárias e realizas-
se trabalho remoto, quando
possível. No dia 20, deu ordem
para fechar escolas, bares, res-
taurantes, cinemas e acade-
mias. Apenas no dia 23, orde-
nou um confinamento de três
semanas – mesmo assim, man-
teve reuniões presenciais com
o gabinete.
Quatro dias depois, no dia 27,
Johnson pegou todos de surpre-
sa quando anunciou que havia
testado positivo para a covid-
- Segundo o próprio premiê,
seus sintomas eram “leves” e
ele ficaria isolado na residência
oficial, em Downing Street, co-
mandando o país por videocon-
ferência.
Dúvidas sobre sua capacida-
de de continuar cumprindo
suas obrigações se multiplica-
ram. No sábado, sua noiva Car-
rie Symonds, de 32 anos, que
está grávida, mas não está
com o premiê, disse que se re-
cuperava após uma semana de
cama com os sintomas da
doença. / REUTERS e NYT
Em 24 horas, foram 786 óbitos e 3,6 mil novas infecções, números que mostram que a pandemia vem se acelerando no país; governo
britânico afirma que primeiro-ministro segue internado em hospital de Londres, mas garante que ele respira sem a ajuda de aparelhos
LONDRES
Semanas atrás, Kate Sellars esta-
va organizando viagens ao me-
lhor estilo James Bond para
seus clientes ricos, nas quais
eles seriam levados de helicóp-
tero até Monte Carlo para a pré-
estreia do último filme de 007,
uma festa brilhante com mem-
bros do elenco e, para cada con-
vidado, um Aston Martin pron-
to para acelerar.
Na semana passada, Sellars
levou três sacolas de compras
do mercado para a porta da fren-
te de Garth D’lima, um conta-
dor aposentado de 73 anos que
está trancado em casa enquan-
to Londres é arrasada pelo coro-
navírus. “É de partir o coração
não poder ajudá-lo a carregar as
compras escada acima”, disse
ela, enquanto acenava para D’li-
ma do portão da frente. “Não
podemos entrar nas casas das
pessoas, pois isso as colocaria
em risco.”
Sellars, cuja agência de via-
gens de luxo foi paralisada pela
pandemia, trocou seu trabalho
glamouroso por uma árdua roti-
na de compras de supermerca-
do e buscas de receitas médicas
para idosos em Hampstead, seu
arborizado e próspero bairro
em Londres. Ela é uma soldada
do vasto exército de voluntá-
rios que se arregimentou em
apenas uma semana para cui-
dar das pessoas mais vulnerá-
veis do Reino Unido durante o
isolamento social.
Quando o governo recente-
mente pediu que 250 mil pes-
soas ajudassem o Serviço Nacio-
nal de Saúde (NHS, na sigla em
inglês), mais de 750 mil se ins-
creveram. O processo teve de
ser interrompido para que se
conseguisse concretizar a en-
xurrada de inscritos. Além do
programa nacional, centenas
de grupos de ajuda comunitária
surgiram em todo o país.
Trata-se de uma emocionan-
te demonstração da solidarieda-
de britânica. É também um bál-
samo depois de três anos e meio
de amargas polarizações em tor-
no do Brexit. “Durante o debate
sobre o Brexit, as pessoas costu-
mavam dizer que nós precisáva-
mos mesmo era de um inimigo
em comum. Agora, temos”, dis-
se David Goodhart, escritor cu-
jo último livro, The Road to So-
mewhere (Estrada para Algum
Lugar, em tradução livre), explo-
rou a divisão entre os enraiza-
dos e os sem raízes na sociedade
britânica. “A diferença é que es-
te é um inimigo invisível.”
O isolamento, disse Good-
hart, expôs as “engrenagens in-
ternas e ocultas” de uma socie-
dade abastada: entregadores,
coletores de lixo, balconistas
de farmácia e trabalhadores de
mercados que mantêm as prate-
leiras abastecidas. “Descobri-
mos que os repositores de prate-
leiras dos supermercados são
absolutamente vitais.”
De maneira ainda mais dra-
mática, o isolamento revelou a
situação dos idosos, que cor-
rem o maior risco de sucumbir.
Com isso em mente, o governo
pediu que as pessoas com mais
de 70 anos cortassem qualquer
contato social que não fosse ab-
solutamente necessário por 12
semanas, para reduzir o risco
de contaminação pelo vírus.
Isso priva até os mais saudá-
veis de caminhar diariamente
até o comércio local. Confina-
dos dentro de casa, muitos não
têm ideia de como podem obter
comida ou suprimentos. Sem
conexões de banda larga, al-
guns não têm contato com ami-
gos e parentes.
“O governo disse para 1,5 mi-
lhão de pessoas ficarem em ca-
sa, sem ter ideia de quem elas
são ou de como podem se iso-
lar”, disse Connor Rochford,
médico e ex-consultor de admi-
nistração que fundou o Exército
de Voluntários de Hampstead
com sua parceira, Sarah Dobbie,
e outro casal, Kate e Brendan
Guy. “As pessoas estão assusta-
das”, disse. “A autoconfiança
funciona só até certo ponto e a
ética do ‘Mantenha a calma, siga
em frente’ não é o bastante.”
Para aposentados como D’li-
ma, que se orgulham de sua in-
dependência, não é um esque-
ma fácil. Alguns dias antes, ele
estava na fila do lado de fora do
supermercado cheio, debaixo
de uma tempestade. “Eu moro
sozinho. Então, sempre faço mi-
nhas compras”, disse. “Mas
meu amigo disse que eu não de-
veria sair de casa.”
Para Sellars, o voluntariado
deu sentido a uma vida até en-
tão pouco afetada pela pande-
mia. Ela tem confiança de que
sua empresa de viagens volta-
rá. Mas, enquanto isso, ela dis-
se que faz amizades com pes-
soas que, de outra forma, se-
riam meras desconhecidas na
calçada. / TRADUÇÃO DE RENATO
PRELORENTZOU, NYT
l Raio X
l Drama
55,2 mil
era o total de infectados pelo
novo coronavírus até ontem
6,1 mil
morreram pela covid-
até ontem
20 mil
é o número de mortes estimado
pelo Imperial College para o
Reino Unido durante a pandemia
ANDREW TESTA/THE NEW YORK TIMES
Mais de 750 mil pessoas
se apresentam para
ajudar britânicos idosos,
dissipando um pouco da
discórdia da era do Brexit
“O governo disse para 1,
milhão de pessoas ficarem
em casa, sem ter ideia de
quem elas são ou de como
podem se isolar. As pessoas
estão assustadas”
Connor Rochford
MÉDICO E EX-CONSULTOR DE
ADMINISTRAÇÃO, QUE FUNDOU O
EXÉRCITO DE VOLUNTÁRIOS DE
HAMPSTEAD, SOBRE O ISOLAMENTO
DOS IDOSOS COM MAIS DE 70 ANOS
Governo britânico fez apelo por
voluntários e ganhou um exército
Auxílio. Kate entrega compras para D’lima, que está isolado