O Estado de São Paulo (2020-04-08)

(Antfer) #1

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A6 Política QUARTA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ROSÂNGELA


BITTAR


J


air Bolsonaro insiste em fazer
da Presidência da República
uma roleta-russa para os brasi-
leiros. Sua família se acha dona do
País e comanda o governo com bai-
xos instintos: soberba, inveja, para-
noia, ciúme, obsessão. Vieram para
matar ou morrer. Sua última e tres-
loucada experiência de apertar o ga-
tilho ao sabor do azar deu xabu, mas
poderia ter resultado na dispensa
do ministro da Saúde, Luiz Henri-
que Mandetta, em plena administra-
ção de uma pandemia letal.
Sabem todos o que se passou, pas-
sa e passará com a família governan-
te. E do lado do bom senso, o que se

passa? Não há ninguém parado. Pelo
contrário, nunca a política e os políti-
cos estiveram com tanto apetite e, ao
mesmo tempo, tão prudentes. Não é
hora de aparecer. No meio de uma guer-
ra, sem conhecer a lista dos sobreviven-
tes, movimentos radicais são exercí-
cios perigosos.
O que se pode identificar é que há
dois consensos atraindo a praça políti-
ca, um deles consolidado e o segundo
em construção discreta. Em pleno vi-
gor, o primeiro tem sido denominado
de “controle de danos”. Consiste em
deixar Jair Bolsonaro falando sozinho,
aplicando suas ideias como quiser,
sem contestações, enquanto a Câma-

ra, o Senado, o Supremo, a Economia,
os ministérios, os órgãos de controle
seguem governando. Tocam suas agen-
das ao mesmo tempo em que tentam
consertar os absurdos que as institui-
ções não conseguirem absorver.
Os militares são importantes nas ta-
refas de contenção. Já constataram
que Bolsonaro é incompetente para
exercer liderança num momento co-
mo este e já demonstraram que não o
querem como seu ditador. Não temem
a volta à planície até porque qualquer

reviravolta, se houver, deixará seguro
seu processo de resgate para a política,
pois o vice é um dos seus. Mas tentam,
por todos os meios, equilibrar o presi-
dente e reduzir as consequências de
seus atos.
Os mais influentes, todos ministros
próximos ao presidente, são fortes e

formam o chamado eixo Leste: Fernan-
do Azevedo, ex-comandante do Leste
(Rio); Luiz Eduardo Ramos, ex-coman-
dante do Sudeste (São Paulo); Braga
Netto, ex-comandante do Leste e ex-
chefe do Estado-Maior do Exército,
aquele que organiza tudo, do atual co-
mandante Edson Pujol.
O eixo Leste é um eixo de poder que
se contrapõe ao general Augusto Hele-
no, nos últimos tempos mais afeito ao
pelotão dos incendiários.
Os governadores, também neste
consenso, perceberam logo que o pre-
sidente da República está em campa-
nha eleitoral e quer mesmo é desestabi-
lizá-los. Tendo o enfrentamento da
pandemia sob sua responsabilidade,
apegaram-se aos ministros que funcio-
nam para seguir seu caminho sem ter
de dar satisfação a Bolsonaro.
Foi exatamente esta política de “con-
trole de danos” que entrou em ação, na
segunda-feira, para dissuadir o presi-
dente de demitir o ministro da Saúde.
Com sucesso, até ontem. Bolsonaro é
imprevisível na sua marcha de dois pas-

sos para a frente e dois para trás.
O segundo consenso, também in-
visível, que a política está à procura
e do qual são conhecidos apenas al-
guns sinais, é encontrar a forma de
afastar Bolsonaro. Seja criando con-
dições para a renúncia, seja pelo im-
peachment. Não são soluções ime-
diatas. Prioridade, agora, é a vida,
por um fio no Brasil e no mundo.
Entre os sinais emitidos, foi grave
o presidente da Câmara, Rodrigo
Maia (DEM), dizer com toda a clare-
za que o presidente não tem cora-
gem de demitir um ministro, deixan-
do a Bolsonaro a opção de se compli-
car, se demitir, ou parecer covarde,
se não demitir.
Outro, igualmente grave, foi o ex-
presidente Fernando Henrique Car-
doso (PSDB) dizer que, se Bolsona-
ro perder as condições de governar,
“o que se vai fazer, muda”. O DEM e
o PSDB sabem como se faz, estive-
ram à frente dos dois impeach-
ments presidenciais havidos no Bra-
sil nas duas últimas décadas.

E-MAIL: [email protected]
ROSÂNGELA BITTAR ESCREVE SEMANALMENTE ÀS
QUARTAS-FEIRAS

D


uas batalhas estão sendo tra-
vadas no Brasil ao mesmo
tempo: uma, na seara da me-
dicina, contra a expansão do novo
coronavírus, e outra contra a desin-
formação produzida por ele. En-
quanto na linha de frente da primei-
ra há milhares de aguerridos profis-
sionais de saúde, na segunda, o
exército é composto por um grupo
dedicado, mas ainda reduzido, de
checadores de fatos. Sem o apoio ex-
plícito e o comprometimento das au-
toridades com a verdade, o País cor-

re o risco de perder a guerra contra
os boatos sobre a covid-19.
Desde 26 de fevereiro, quando o
País registrou o primeiro caso de co-
ronavírus, os fact-checkers brasilei-
ros já identificaram mais de 100 in-
formações falsas sobre a pandemia –
mais de três por dia.
De acordo com dados da base in-
ternacional de checagens sobre o no-
vo coronavírus mantida pela Inter-
national Fact-Checking Network,
Facebook, WhatsApp e Twitter são
os canais mais utilizados para distri-
buir desinformação no Brasil, mas a
lista completa é longa.
O que aflige os checadores é cons-
tatar que autoridades brasileiras,
graças à influência de seus cargos,
contribuem de forma expressiva pa-
ra o avanço da desinformação. Des-
de o início da pandemia, políticos

produziram, endossaram e compar-
tilharam dados errados sobre vaci-
nas, distanciamento social e a ori-
gem do novo coronavírus. Também
usaram dados defasados e acabaram
criando um ambiente de desconfian-
ça econômica em que florescem gol-
pes digitais.
Ao dar voz, espaço, pixels, ima-
gens e caracteres a inverdades, as au-
toridades colocam em risco a vida
dos brasileiros. Monitoramento fei-
to pelos checadores mostra que, ao
fazer ou compartilhar uma declara-
ção falsa, autoridades têm consegui-
do inverter o sinal da mensagem ou
inflar o que chega à população.
A hidroxicloroquina é um exem-
plo. Ao tratar como definitivos estu-
dos ainda incipientes feitos com o
medicamento, políticos o elevaram
à condição de cura para a covid-19.

Não demorou para que a droga desa-
parecesse das farmácias, prejudican-
do os que, de fato, precisam dela, e
expondo a efeitos colaterais os que a
ingeriram em busca de proteção con-
tra o novo coronavírus.
É urgente, portanto, que as autori-
dades tenham responsabilidade ao
falar sobre a pandemia. Que se certi-
fiquem de que o conteúdo a ser ex-
posto tem base científica, é atual e se
refere ao local sobre o qual estão fa-
lando. Que cessem já os discursos
distorcidos, com contextos minimi-
zados ou teses na contramão da ciên-
cia. O ruído dessas falas já teve con-
sequências dramáticas.
No Irã, mais de 40 pessoas morre-
ram envenenadas ao ingerir álcool
puro para curar o coronavírus. No
Reino Unido, torres de celular fo-
ram queimadas por quem acredita

que a covid-19 vem do sistema 5G de
telefonia móvel. No Brasil, o isola-
mento social perde adesão ao ser ata-
cado por autoridades que desconsi-
deram o que é adotado mundo afora.
A transparência em relação ao que
se sabe sobre a covid-19 é inegociá-
vel. Cidadãos tomam decisões diá-
rias com base nesses dados. Eles pre-
cisam ser atuais, fidedignos e acessí-
veis a todos.
Os checadores do Brasil ressaltam
ainda que estão em contato perma-
nente com as principais plataformas
de tecnologia e redes sociais do mun-
do, em um esforço conjunto contra a
desinformação. Seguirão denuncian-
do publicamente comportamentos
irresponsáveis na divulgação ou na
amplificação de discursos falsos so-
bre o coronavírus e a covid-19. Ve-
nham eles de autoridades ou não.

Política entrou em ação
para dissuadir Bolsonaro de
demitir o ministro da Saúde

Autoridades, parem de distorcer fatos


Ao fazer ou compartilhar
declaração falsa, líderes
políticos têm invertido o sinal
da mensagem ou inflado o
que chega à população

Artigo


l] Tai Nalon
Aos Fatos

l] Natália Leal
Agência Lupa

l] Edgard Matsuki
Boatos.org

l] Gilmar Lopes
E-farsas

l] Daniel Bramatti
Estadão Verifica

l] Cristina Tardáguila
International Fact-Checking Network

Daniel Weterman / BRASÍLIA


O ministro da Justiça, Sérgio
Moro, usou o caso do gângs-
ter americano Al Capone,
morto em 1947, para pedir o
veto presidencial a uma lei
aprovada no Congresso que
muda os julgamentos do Con-
selho Administrativo de Re-
cursos Fiscais (Carf) – o tribu-
nal da Receita Federal. Segun-
do Moro, a lei pode travar in-
vestigações importantes. O
presidente Jair Bolsonaro
tem até hoje para decidir se
mantém o dispositivo.

O Carf é o órgão que julga re-
cursos de empresas e pessoas
físicas que entram na mira da
Receita Federal. Com a mudan-
ça na lei aprovada pelo Congres-
so, em caso de empate nos julga-
mentos do conselho, a decisão
será automaticamente favorá-
vel ao contribuinte que está sen-
do julgado. Atualmente, o voto
decisivo pertence à presidência
do colegiado – o chamado voto
de qualidade. Este cargo é, obri-
gatoriamente, ocupado por um
representante do Fisco.
“Como bem ilustrado na no-
tória condenação de Al Capone
a 11 anos de prisão por sonega-


ção fiscal, chefes de organiza-
ções criminosas e mesmo crimi-
nosos envolvidos em corrup-
ção, só são punidos, por vezes,
por condutas criminais acessó-
rias e não pelos crimes princi-
pais”, diz o documento em que
Moro defende o veto.
Al Capone foi um dos mais cé-
lebres chefes de máfia nos Esta-
dos Unidos, e foi condenado
em 1931 por sonegação de im-
postos. Depois, passou a ser in-
vestigado por crimes que envol-
viam homicídios, extorsões, se-
questros e contrabando.
Além de Moro, o procurador-
geral da República, Augusto
Aras, e o Sindicato Nacional
dos Auditores Fiscais da Recei-
ta Federal do Brasil (Sindifisco)
são contrários ao fim do voto de
qualidade. Eles argumentam
que a medida pode atrapalhar
investigações da Lava Jato e
comprometer a arrecadação de
R$ 11 bilhões em processos da
operação que poderão ser ava-
liados pelo Carf.

‘Jabuti’. O trecho que acaba
com o voto de qualidade no
Carf foi incluído por partidos
do Centrão na Câmara – e man-
tido no Senado no fim de março


  • na Medida Provisória do Con-
    tribuinte Legal, assinada por
    Bolsonaro para regularizar dívi-
    das com a União.
    O acréscimo foi considerado
    um “jabuti” – termo usado quan-


do um tema não tem relação
com o escopo original de um
projeto ou medida provisória. A
existência de “jabutis” em MPs
é considerada ilegal pelo Supre-
mo Tribunal Federal.

De acordo com levantamen-
to da Procuradoria-Geral da Fa-
zenda Nacional, cerca de 7%
dos processos são decididos pe-
lo voto de qualidade. Mas esses
são justamente os casos de
maior impacto financeiro. So-
mente em 2019, foram manti-
dos em julgamentos com de-
sempate R$ 27 bilhões em autua-
ções da Receita Federal.
Defensores da medida argu-
mentam que ela acaba com uma
“caça às bruxas” na fiscalização
tributária. “O contribuinte sem-
pre está levando desvantagem
no Carf. O País não aguenta
mais, nem a classe que gera em-
prego e renda, passar por esses
absurdos”, disse o senador Van-
derlan Cardoso (PP-GO) quan-
do o texto passou no Senado.
Para Moro, no entanto, o ris-
co da medida é interromper as
representações fiscais do Carf
que dão origem a investigações
em órgãos como Ministério Pú-
blico e Polícia Federal. Com de-
cisão favorável ao contribuinte,
o processo é arquivado.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l O vice-procurador-geral da
República, Humberto Jacques de
Medeiros, pediu ao Supremo Tri-
bunal Federal (STF) o arquiva-
mento da notícia-crime apresen-
tada pelo deputado federal Regi-
naldo Lopes (PT-MG) contra o
presidente Jair Bolsonaro, por
ter visitado comércios em Brasí-
lia e defendido o fim do isolamen-
to social contra o coronavírus.
Lopes pretende enquadrar o pre-
sidente no artigo 268 do Código
Penal, que consiste em infringir

determinação do poder público,
destinada a impedir propagação
de doença contagiosa – o crime
tem pena de um mês a um ano.
Segundo Medeiros, não há co-
mo imputar a Bolsonaro o crime
de descumprimento de medida
sanitária preventiva porque não
havia uma ordem dessa natureza
vigorando. “Não há notícia de
prescrição, por ato médico, de
medida de isolamento para o pre-
sidente da República”, argumen-
ta. O parecer foi elaborado a pedi-
do do relator do processo no Su-
premo, ministro Marco Aurélio
Mello, que vai decidir se pelo ar-
quivamento ou não do caso. /
RAFAEL MORAES MOURA e LUIZ
VASSALLO

Controle de danos


Entidades pedem


‘pacto’ e diálogo


contra covid-


Ministro é contra mudança em julgamentos


do Carf aprovada pelo Congresso em março


‘Risco’. Para Sérgio Moro, alteração em julgamentos do Carf pode prejudicar investigações

Bolsonaro não


cometeu crime,


diz vice da PGR


José Maria Tomazela
SOROCABA

Seis das mais expressivas enti-
dades de defesa dos direitos hu-
manos e das liberdades indivi-
duais se juntaram, ontem, para
pedir aos cidadãos e governan-
tes a formação de uma aliança
para enfrentar a crise sanitária,
econômica, social e política que
o País vive por causa da pande-
mia do coronavírus. O Pacto pe-
la Vida e pelo Brasil cobra do
presidente Jair Bolsonaro a con-
dução de diálogo em harmonia
com os Poderes da República,
“ultrapassando a insensatez
das provocações e dos persona-
lismos, para se ater aos princí-
pios e aos valores sacramenta-
dos na Constituição de 1988”.
De acordo com as entidades,
o momento exige de todos, mas
principalmente de governantes
e representantes do povo, “o
exercício de uma cidadania guia-
da pelos princípios da solidarie-
dade e da dignidade humana, as-
sentada no diálogo maduro, cor-
responsável, na busca de solu-
ções conjuntas para o bem co-
mum, particularmente dos
mais pobres e vulneráveis”.
É a primeira vez na história
que Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), Or-
dem dos Advogados do Brasil
(OAB), Comissão Arns, Acade-
mia Brasileira de Ciências
(ABC), Associação Brasileira de
Imprensa (ABI) e Sociedade
Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC) se unem em tor-
no de um pacto nacional, “no
dever de alertar e representar a
sociedade brasileira”.
“Essa articulação inédita das
entidades visa, portanto, um
alerta sobre a necessidade de
diálogo entre todos os represen-
tantes das instituições brasilei-
ras”, disse o presidente da Co-
missão Arns, José Carlos Dias.

RENATO COSTA /FRAMEPHOTO - 10/3/

Moro cita


Al Capone


ao pedir veto


presidencial

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