24 | Valor| Quintaesexta-feira,9e10deabrilde2020
com pessoasque viveramcoisasque nunca
imaginara.Mas,um dia, numadiscussão,
disseparaumaaluna:“Sougay,meupainão
fala comigopor causadisso. Não importam
as nossasdiferenças,tem muitacoisaigual.
A gentetem uma missãona vida. Eu sei o la-
dodecá.Vocêsabeoladodelá”.
Comonas histórias com final feliz,teve a
reconciliaçãofamiliar.No ano passado,ele
ganhouo prêmioCharles Bronfman,que
elegepessoascom menosde 50 anoscujo
trabalho inovador, orientadopor valores
judaicos, melhorou significativamente o
mundo. “Tudo fez sentido, no fim”, diz.Ho-
je, sente-seem paz. “Venhode uma família
de empreendedores.Nuncafui estudargas-
tronomia paraser chef.Semprequis abrir
umrestaurante,masencontreiagastrono-
miadeoutraforma.Minhafunçãoéorgani-
zar, disciplinar, colocartodoo mundotra-
balhandojunto.Masnãonosentidoemque
umchefcomandaumacozinha.”
PauloMagrão,quefazhortascomunitárias,
senta-se à mesa.Ele contaque tem tido difi-
culdades para colocar aquestão da alimenta-
çãonaspautasculturaisequeixa-sedenãoter
conseguidorecursos paraseusprojetos.Ali,
todostêm um propósito queune comida,
educaçãoecapacitaçãoprofissional.
Coma Gastromotiva,Hertz trabalhou
comdiversospúblicos.Primeirocomem-
preendedores,que vinhampara o bufê,de-
pois comjovensde periferia.Em 2008,o
cursomigrouparaafaculdadeAnhembi
Morumbi, que éonde hoje se formam,via
Gastromotiva,as pessoasque vivemem di-
ferentessituaçõesde vulnerabilidade so-
cial.Atualmenteestátudosuspenso.
“O sonhodo joveméestudar, ir paraa
universidade. Lá ele tem acessoàbiblioteca,
podeestudar, realizaum poucoseu sonho.
Ele não precisafazernadaparaentrarna
universidade.Ganhaumcracháeéumalu-
nonormalcomacessoatodaauniversidade
portrêsmesesemeio”, diz.
Houveumperíodoem que os participan-
tes eramsó desempregados.Depoisvieram
mulherespresasnoregimesemiabertopara
omesmocurso. “Começamos a entender
comodeveríamosadaptarnossametodolo-
giaparadiferentesrealidades”,afirma.“Nos
últimosanoslidamoscom imigrantese re-
fugiados. Tem sempreum alunohaitiano,
venezuelanoe africanosde váriospaíses.
Geralmente são atendidos por alguma
ONG.Depoisda aberturado Refettorio, no
Rio, começamosa lidarcom moradoresde
ruaepessoasquevivememabrigos,comfa-
míliasemocupações.”
Nuncaum assistentesocialpassoupela
Gastromotiva.Hertzacreditanopodercole-
tivo da trocae em aulasde cidadania,que
encorajam todos a trazer sua história.
Transpora barreira socialé um desafiodiá-
rio,queofazsentirmaisprivilegiadoainda.
“Temosum olharenviesadodesde que nas-
cemos. É comoum chip, com conceitos e pre-
conceitos contra pessoas. Todo o mundotem.
O que aprendi é que você não tira isso. Você
traz para consciênciae lembra dissoa todoo
momento. É umacondição”, diz. “Acredito
que sentarecomerjunto àmesa éoque vai
3
R$ 90
Cardápio
CozinhadaTiaNice*
Refeiçõescompletas
(Saladasdealface,beterraba,
saladadefeijãofradinhoe
batatinhacomcasca;charutinho
defolhadecapuchinharecheado
comricota,palmitoe molhode
tomate;escondidinhodecalabresa;
sucodeabacaxie café)
Total
Foto:
Silvia
Costanti/
Valor
*Self-service:deR$ 20 (sóbufêdesaladas)a R$ 50 (compratosquentes)
SILVIACOSTANTI/VALOR
“Vocênãovai acabar
coma indústria,ela
vai começara se
transformar”, diz
Hertz,fundadorda
ONGGastromotiva,
queatuaemSão
Paulo,Rio,El
Salvador,Méxicoe
ÁfricadoSul
mudandoisso.Porquevocêcompartilha,olha
no olho,fala sobreassuntoscomuns equebra
esseestigma.Tantooteucomoodeles.”
TiaNice se aproximada mesaváriasve-
zes. Perguntase queremostrocaros pratos
e participa da conversa.Ele elogiaa comi-
da. Éespecialistaem cozinhaindiana.Che-
gava aficar dez dias em cadaregiãoda Ín-
dia estudandoingredientes. Seu fortesão
os curriesindianos etailandeses,os cozi-
dos easmoquecas. Em casa faz pão ecozi-
nha em panelade barroe wok.
“Na Gastromotiva a gentenão acredita
maisno 8ou80, em ficar no nossomundi-
nho. Omovimento do ‘slow food’já fez seu
protagonismodesercontraagrandeindús-
tria.EutrabalhocomaCargilleusoafiloso-
fia do ‘slow food’. Éum diálogo,uma opor-
tunidadeeconômica”, diz Hertz.“Você não
vaiacabarcomaindústria,elavaicomeçara
se transformar. Anosatráso McDonald’s
comprouaPretaManger[redede fast-food
com ingredientesfrescose maissaudáveis].
ACoca-ColaeoSantandernosapoiam.”
Um poucocomumasensaçãode dever
cumprido, Hertzdiz ter descoberto por
meiodoatodecomerumaformadeveravi-
da maishumanaemais solidária.“Meute-
são está nisso. Encontrarpessoasao redor
domundoqueseajudemafazercoisas,afa-
zer acontecer”, conta.“A gastronomiasocial
jámelevouaconhecermaisde15empreen-
dedorescomoeu, projetosdentrodas pri-
sões de Londresque estãoinfluenciando as
políticas públicasna Inglaterra,sete restau-
rantesnoCamboja...Souumperegrino.”■