A CIÊNCIA COM ROSTO DE MULHER

(Casulo21 Produções) #1

Do reflexo


à reflexão


a mulher estende os braços ao que lhe é imposto
como impossível. O ambiente não aceita sua
presença, muito menos os tantos pares de calças,
nessa época em que afazeres femininos eram
restritos ao cuidado da casa e de crianças, suas
e dos outros. Ela queria saber. Queria provar,
experimentar. Descobrir causas e efeitos.
Penteou os cabelos e os prendeu no alto da
cabeça – costume da época e forma de mantê-
los afastados dos olhos curiosos debruçados
sobre a mesa de estudos, no laboratório
improvisado. A grande barriga encostava na
beirada da bancada, redesenhou seu corpo pela
segunda vez, mas não era um peso. 
Olhou para o lado, estendeu a mão ao marido.
Ele sabia o que desejava. Seu caderno de
anotações pedia novos rabiscos, registros de
cores, texturas, composições e odores. 
Juntos pesquisavam o mesmo tema,
equilibravam-se. Publicaram suas descobertas,
abriram veredas, ganharam prêmios. Mas, ser
mulher ainda lhe impunha cercas. 
Alguns meses antes, fora submetida à cadeira
na plateia, enquanto apenas o marido podia
discursar sobre as experimentações de ambos.
O vestido longo de tecido escuro era abotoado
até a gola, destacando o rosto sóbrio que tantas
vezes figurou solitário entre os de bigode nas
fotografias históricas. Foi pioneira e laureada,
passeou precisa entre fenômenos físicos e
químicos. Causou incômodo, provou ser capaz. 
No fim daquele dia, respirou fundo, alisou a
barriga prestes a oferecer outra menina ao
mundo. Por elas, suas filhas, por sua mãe, sua
irmã, por todas elas, puxou o grampo dos
cabelos. Como leoa, devorou o impossível.

Inspirado na história de Marie
Curie (Polônia, 1867 – França, 1934),
descobridora da radioatividade e outros
elementos químicos, primeira mulher
a ganhar o Prêmio Nobel e única a
ganhá-lo duas vezes em áreas diferentes:
Física (1903) e Química (1911).

Do reflexo


à reflexão,


Equilíbrio 63
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