O Estado de São Paulo (2020-04-11)

(Antfer) #1

Julio Maria


O colapso da cadeia produtiva
da música industrial mais rentá-
vel do País não durou duas sema-
nas. Quando estavam todos con-
finados, cantando de suas saca-
das e fazendo lives no sofá de ca-
sa, duplas e cantores sertanejos
entraram em ação de forma rápi-
da, coordenada e, o que mais im-
pressiona em meio à paralisia ge-
neralizada, fazendo rodar uma
economia parruda, solidária e au-
tossustentável. O mineiro Gust-
tavo Lima, 30 anos, entendendo
que todos os jovens que o ouvi-
riam na balada estariam em casa,
decorou a sala com canhões de
luz, posicionou quatro câmeras,
uma delas se movimentando na
área da piscina e do jardim de sua
residência, e iniciou a primeira
live dos tempos modernos. Em
cinco horas, cantando cem músi-
cas, atingiu 11 milhões de pessoas
e um número recorde de 750 mil
acessos simultâneos, 300 mil a
mais do que a maior marca ante-
rior, de Beyoncé, no Festival Coa-
chella de 2018.
Uma semana depois vieram os
goianos Jorge e Mateus. Ao lon-
go de 4h30, eles foram vistos por
3,1 milhões pessoas ao mesmo
tempo, totalizando 36 milhões
de visualizações, com um show
chamado Na Garagem. A trans-
missão foi acusada de ser bem
produzida até demais, com gen-
te tomando cerveja no set, ao
contrário do espírito do confina-
mento e simplicidade das lives
tradicionais. Uma marca de cer-
veja entrou na jogada e teve expo-
sição durante todo o show, com
garrafas dispostas em um balde.
A produção respondeu dizendo
que todos seguiram as orienta-
ções da Organização Mundial de
Saúde e o próprio ministro da
Saúde, Luiz Henrique Mandetta,
apareceu em um vídeo pedindo
cuidados, mas um alerta soou.
Marília Mendonça, a Rainha
da Sofrência, foi a próxima, com
uma live na última quarta-feira
(8). Sentada ou de pé na sala de
sua casa, usando chinelo de de-
do, Marilia bateu tudo o que ha-
via antes, segundo os números
divulgados por sua produção,
chegando a mais de 3,2 milhões
espectadores simultâneos, 100
mil a mais que Jorge e Mateus.
Um intérprete de libras (a língua
brasileira de sinais) a acompa-
nhava o tempo todo e ela lembra-
va com preocupação dos cuida-
dos para as pessoas seguirem o
isolamento na luta contra o coro-
navírus. Fez também pausa para
uma mensagem gravada por
Mandetta.
A peculiaridade do meio serta-
nejo de se movimentar em bloco
(o que não quer dizer unido), ab-
sorvendo rapidamente um case e
o transformando em padrão,
criou, em uma semana atípica,
uma receita com potencial para
viabilizar carreiras, conseguir
doações e ajudar a criar um cir-
cuito complementar ou até mais
forte do que os shows ao vivo.


Uma fonte ligada à agência de pu-
blicidade afirma que uma das li-
ves ganhou, só em merchandi-
sing, R$ 5 milhões.
É preciso avaliar a cadeia pro-
dutiva dos sertanejos sem ran-
ço. A única música do planeta
que consegue se movimentar en-
quanto ele, o planeta, está confi-
nado, merece ser estudada e –
por que não? – servir de paradig-
ma de mercado. Antes dos serta-
nejos, lives eram momentos ca-
seiros gravados em câmeras de
celular, sem nenhuma contra-
partida monetária. A partir de-
les, pode se tornar uma saída.
Além das empresas parceiras
colocando dinheiro, os shows
contaram com um inédito poten-
cial de arrecadação para os traba-
lhos no combate ao coronaví-
rus. Gusttavo Lima conseguiu
R$ 500 mil em doações, entre di-
nheiro, alimentos, máscaras e ál-
cool em gel. Jorge e Mateus ga-
nharam 172 toneladas de alimen-
tos, 10 mil frascos de álcool em
gel e 200 cursos para a área da
saúde. Marilia conseguiu mais
de 225 toneladas de alimentos,
duas toneladas de produtos de
limpeza, 250 quilos de pão de
queijo, 3.600 li-
tros de refrige-
rante e mate-
riais de cons-
trução para se-
rem doados.
Os efeitos co-
laterais das su-
perlives conti-
nuam sendo aferidos. Na tarde
desta quinta-feira (9), a platafor-
ma de streaming Deezer contabi-
lizou o aumento de consumo de
músicas digitais pós-exibições.
Gusttavo Lima teve 40% a mais
em audições no último domin-
go, em relação aos domingos an-
teriores; e as de Jorge e Mateus
cresceram 55,69%. Tudo isso po-
de soar digital demais a setores
tradicionalmente orgânicos, ha-
bitados por músicos de uma ge-
ração offline, como os da chama-
da MPB, e é justamente esse o
choque de realidade que as lives,
o único lugar em que um artista
pode aparecer em tempos de
pandemia, prometem fazer.
Como os bancos digitais, prati-
cados há anos mas só agora acio-
nados por pessoas de perfis tradi-
cionais que precisam pagar con-
tas mas não querem ir às agên-
cias contrair o coronavírus, as li-
ves podem se tornar não um,
mas o caminho. No entanto, elas
estão na ponta de um gerencia-
mento de carreira digital que re-
quer atenção e tempo. “A Marí-
lia Mendonça não conseguiu
quebrar recordes por acaso. Ela
alimenta suas redes com posts
diários e, por isso, tem 30 mi-
lhões de seguidores do Insta-
gram. Caetano Veloso, de uma
geração que não investe tanto

em redes sociais, tem um públi-
co de 1,6 milhão, um número ob-
viamente que não condiz com a
quantidade de seus fãs no mun-
do real”, diz João Mendes, de 29
anos, empresário de mídias so-
ciais que já gerenciou canais de
Whinderson Nunes, Lucas Ne-
to e Gustavo Mendes. “O coro-
navírus veio para dividir o mun-
do. Os hábitos nunca mais se-
rão os mesmos.”
O exemplo de Caetano é perti-
nente no momento em que sua
mulher, Paula Lavigne, organi-
za uma live com ele e outros cin-
co artistas do movimento Pro-
cure Saber, associação que re-
presenta artistas grandes da
MPB, ainda sem confirmações.
“Será bem caseiro, para levan-
tar fundos não para os artistas,
mas para os técnicos, gente que
está passando por necessida-
des. Se tiver que ser tosco, vai
ser tosco”, ela diz.
Assim como aquilo que as ori-
ginou, as superlives virais de-
vem continuar subindo na espi-
ral frenética até atingir o pico,
permanecer no platô por um
tempo e, gradativamente, come-
çar a cair. “Só ficarão os artistas
que investi-
rem e fizerem
boas lives”, diz
João. O calen-
dário garante
shows digitais
até o final do
mês, algo que
tem sido cele-
brado nas redes sociais como se
fosse o anúncio de shows físicos.
Luan Santana fará a sua dia 26
de abril, às 18h, direto de seu
quintal, com um violonista e 52
músicas no repertório. “A live
está se consolidando como um
meio de engajamento solidário,
e isso tem sido uma bênção”,
diz Luan. “Se depois que tudo
passar, com fé em Deus, ela vi-
rar mais uma ferramenta de tra-
balho, isso o futuro dirá.”
Paula Fernandes já havia fei-
to uma caseira em março. “O
grande propósito é levar entre-
tenimento para quem está em
casa, deixar esse clima mais le-
ve”, afirma. Zezé Di Camargo e
Luciano farão uma “semi live”
dia 19, usando imagens inéditas
da turnê Deus Salve a América,
de 1998, comentada ao vivo por
Luciano. Zezé, quarentenado
em sua fazenda de Araguatás,
em Goiás, não deve aparecer.
O também goiano Felipe
Araújo, que fará uma live dia 17,
diz que o próprio meio, com er-
ros e acertos, cria um novo cami-
nho. “É importante seguir as
normas da OMS. Creio que to-
dos estamos aprendendo com
os próprios erros, e nós com os
erros dos outros. Mas ninguém
pode ser crucificado por ter bus-
cado o bem.”

‘OS HÁBITOS NUNCA MAIS
SERÃO OS MESMOS
DEPOIS DA CRISE’, DIZ
JOÃO MENDES

Solidariedade


Orquestra ajuda Heliópolis PÁG. H6


NA


QUARENTENA


Híbrido.
Luciano, sem
Zezé, vai
mostrar
imagens de
um show

O EFEITOO EFEITO


LIVELIVE


PRÓXIMAS LIVES


l Gusttavo Lima
Dia 11, às 20h


l Zé Neto e
Cristiano
Dia 12, às 18h


l Felipe Araújo
Dia 17, às 20h


l Wesley Safadão
Dia 18, às 20h


J&M PRODUÇÕES

BRUNO FIORAVANTI

PARCERIA

BRUNO FIORAVANTI

Como as transmissões ao vivo superproduzidas podem mudar a música


Shows. Shows. Luan Luan
vai cantar de vai cantar de
seu quintal; seu quintal;
Jorge e Mateus Jorge e Mateus
(abaixo) foram (abaixo) foram
criticados por criticados por
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