Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

12 FREUD


Essa história toda de inconsciente começou
lá na Grécia Antiga, quando Platão (427 a.C.-
347 a.C.) disse que o corpo pertence ao mundo
material, enquanto a mente – que ele chamava
de alma – era outra coisa: pertencia ao mundo
das ideias.
Formava-se ali uma noção primitiva de cons-
ciência, que ficou muito mais bonita quando, no
século 17, o filósofo René Descartes (1596-1650)
fez sua própria descrição da relação entre corpo
e mente. Descartes imaginava uma mente ima-
terial que ficaria instalada, veja só, na parte do
fundo do cérebro, enquanto o corpo seria um
sistema operado por fluidos que provocam os
movimentos. “Há uma alma racional nessa má-
quina”, ele diria. “Sua morada é o cérebro.” Já
havia ali, portanto, uma localização da mente no
órgão que temos dentro da cabeça – não pensa-
mos com o estômago, mesmo quando estamos
famintos –, uma percepção que teria reflexo na
própria origem da neurociência.
Mas, ainda antes que essa divisão de tarefas
fosse proposta por Descartes, o suíço Paracelso
(1493-1541) apresentou a primeira descrição mé-
dica do inconsciente. Mais do que isso, ele pra-
ticamente abriu caminho para o que viria a ser
a psicanálise, associando sintomas físicos a trans-
tornos mentais inconscientes. “A causa da doen-
ça chorea lasciva [um distúrbio de movimentos
involuntários do corpo, que ele julgava associa-
do à excitação sexual] é uma mera opinião e ideia,
assumida pela imaginação, afetando aqueles que
acreditam em tal coisa.” Antecipando Freud, Pa-
racelso defendia que há duas vidas distintas no
homem: a racional e a instintiva, e que a última
estaria ligada a estados alterados da consciência,
como o sonho.
Desde então, sempre houve, na filosofia, teorias
sobre a existência de uma parte oculta da mente.
No século 19, um alemão, Johann Friedrich Her-
bart (1776-1841), também estudioso do funcio-
namento da mente, proporia um modelo que
depois seria aprimorado por Freud. Ele se per-
guntava como não ficamos malucos tendo de
guardar na cabeça o zilhão de pensamentos que
temos ao longo da vida. Onde caberiam tantas
ideias, sentimentos, lembranças? Herbart então
sugeriu um esquema mental que funcionaria

e


FILOSOFIA DA M eNTe


assim: as ideias conteriam energia, e resistiriam
entre si quando discordantes, causando um efeito
de afastamento. Quando temos duas ideias anta-
gônicas, acabamos automaticamente favorecendo
uma delas, que se torna perceptível na nossa men-
te. Já a ideia perdedora seria repelida e expulsa
para fora da consciência, para um lugar que ele
chamou de “estado de latência” – mas que você
pode chamar de inconsciente.
Também é impossível falar sobre a influência da
filosofia em Freud sem citar Arthur Schopenhauer
(1788-1860). Mais um alemão nessa história, o
autor de O Mundo como Vontade e Representação
dizia que temos uma Vontade, irracional e “fora
de nossas representações cognitivas” – algo mui-
to semelhante à noção freudiana do inconsciente
e seus impulsos. A semelhança entre o pensamen-
to desses dois gigantes chega a ponto de Schope-
nhauer dizer que a Vontade impediria que alguns
pensamentos chegassem ao nosso intelecto, porque
seriam inaceitáveis – em alguns casos, poderiam
nos levar à loucura. Eis aí a própria base da re-
pressão na psicanálise.
Ou seja, quando Sigmund Freud começou a
prática clínica, nos anos 1880, a intelectualidade
europeia já estava ocupadíssima com discussões
sobre o inconsciente. Um livro de Eduard von
Hartmann, Filosofia do Inconsciente, era tão po-
pular na época quanto os livros com “foda” no
título são nos dias de hoje: ganhou nove edições,
um fenômeno paulocoelhiano para o século 19.
E a própria literatura já conquistava público tra-
balhando o tema de forças inconscientes que se
impõem sobre a porção mais racional do indiví-
duo. Foi assim com O Médico e o Monstro (The
Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde), obra de
Robert Louis Stevenson (1850-1894). Nesse clás-
sico da literatura de terror, o drama gira em tor-
no da divisão da mente de um indivíduo em
duas personalidades, uma toda certinha – o res-
peitável Dr. Jekill – e outra impulsiva e agressiva


  • Hyde, o psicopata –, uma elaboração que en-
    contra paralelos nos conflitos psíquicos de que
    Freud falaria mais tarde.
    Nesse contexto, de muita especulação filosófica
    e artística, Freud foi o primeiro a se comprometer
    integralmente com o assunto, usando essas teses
    anteriores como escafandro para mergulhar nas
    profundezas abissais do inconsciente. Quando
    emergiu de volta, trouxe consigo uma topologia
    para a mente humana, com localizações e funções
    distintas para cada parte do nosso aparelho psí-
    quico. Foi assim que transformou a noção de on-
    de vem cada emoção e decisão que tomamos na
    vida. De verdade, foi a partir daí que Freud come-
    çou a construir uma parte significativa da auto-
    percepção de qualquer indivíduo: a concepção
    moderna do que há de mais humano – falível e
    ardente de desejo – dentro de nós.
    É o que vamos ver ao lado.


Artistas e pensadores
já especulavam sobre
o inconsciente antes
de Freud. Uma rica herança
que foi base de sua teoria.

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