DOSSIÊ SUPER 47
A concepção freudiana da sexualidade
parte sempre de um ponto de vista
masculino – e machista mesmo. Para
Freud, a mulher tem uma inferioridade
anatômica que a condena à submissão
e à passividade. Ou à neurose.
“Quem Quer uma espingarda quando se pode
ter uma pistola automática?” Apesar da menção
a armas de fogo, a questão, feita por Natalie An-
gier, vencedora do Prêmio Pulitzer e jornalista
de ciência do The New York Times, não tem a
ver com troca de tiros – e sim com as teorias
freudianas sobre a sexualidade feminina. A
pergunta, que está em seu livro Woman: An
Intimate Geography (“Mulher: Uma Geografia
Íntima” – sem edição brasileira), explica, nas pa-
lavras da escritora, por que “as mulheres nunca
compraram a ideia de Freud de inveja do pênis”.
A revolta tem razão de ser: a visão de Sigmund
Freud sobre o desenvolvimento sexual da mu-
lher é a mais contestada de suas ideias, tendo
despertado animosidades em feministas desde
que foi publicada. E não só com elas. Dentro do
próprio círculo da psicanálise, naquelas primei-
ras décadas do século 20, já havia quem – in-
clusive homens – achasse estapafúrdia a noção
de que toda menina deseja para si uma man-
gueirinha acoplada igual à dos meninos – e que
sua personalidade futura será decidida pela
forma como aceita essa “desvantagem”.
A psicanalista alemã Karen Horney (1885-
1952), fundadora da escola neofreudiana – que
alterna obediência e discordâncias com o pai
da psicanálise –, foi uma das vozes que ime-
diatamente se ergueram contra essa teoria de
o feminino nascer da constatação de ausência
do órgão masculino. “Como em todas as ciên-
cias, a psicologia das mulheres tem sido até
agora considerada apenas do ponto de vista
dos homens”, ela disse. E foi além, sugerindo
que o macho é que teria uma “inveja do útero”:
eles fariam de tudo para ser bem-sucedidos
na vida apenas como forma de compensar a
incapacidade de gerar uma criança. “Quando
alguém começa a analisar os homens, como
eu fiz, após uma vasta experiência de análise
de mulheres, tem a impressão surpreendente
da intensidade dessa inveja da gravidez, do
parto e da maternidade.”
Além da inveja do pênis, a teoria freudiana
sobre a sexualidade feminina tem outros con-
ceitos nada elogiosos para elas: a mulher como
uma criatura castrada sexualmente; a vocação
feminina para o masoquismo; o superego sub-
desenvolvido (que transformaria a mulher em
um perigo para a civilização); a submissão e o
matrimônio como destino da “mulher normal”...
em resumo, a inferioridade em relação ao homem
- inerente e anatômica.
Mas, antes de colocarmos Freud no caldeirão
do inferno dos porcos chauvinistas, é bom lem-
brar que estamos falando de um pioneiro do
interesse pelo que a mulher tem a dizer: a psi-
canálise nasceu de sua iniciativa de tratar mu-
lheres neuróticas – não como loucas desvaira-
das, e sim como seres humanos com questões
profundas, que precisavam ser externadas.
Mesmo sua polêmica teoria sobre a sexuali-
dade feminina era um avanço: até então, acre-
ditava-se que a mulher nem era capaz de ter
desejo sexual. “A riqueza e a singularidade da
psicanálise estão no fato de ela ter se constitu-
ído justamente na tensão discursiva – presente
na obra freudiana – entre dar voz a esse outro,
singular, e reafirmar o masculino como univer-
sal na cultura”, aponta a psicanalista Regina
Alice Neri no livro Feminilidades. Eis aí o pa-
radoxo de Freud.
Q
imagem: Getty Images
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