48 FREUD
Um homem
do seu tempo
O problema é que ele foi de vanguarda
até certo ponto – em diversos aspec-
tos, seu pensamento alinhava-se ao
seu tempo e ao lugar em que vivia.
“Na sociedade vienense, as mulheres
estavam sujeitas à interdição e inter-
venção masculinas. Todos nelas manda-
vam: pais e irmãos”, explica José Artur
Molina, em O que Freud Dizia sobre as
Mulheres. “Os casamentos de mulhe-
res com homens mais velhos e ricos
eram comuns, numa clara afirmativa
de que o que elas precisavam era de
bem-estar financeiro (nada mais do que
uma forma de prostituição instituída
pela hipócrita Viena).” Em seu livro O
Segundo Sexo, a francesa Simone de Be-
auvoir (1908-1986) dedica um capítulo
ao “ponto de vista psicanalítico” a res-
peito das mulheres, e fala da concepção
freudiana estar repleta de equívocos
provenientes desse espaço-tempo: “A
psicanálise só pode estabelecer suas
verdades no contexto histórico”, ela
diz. Para Beauvoir, se o pensamento
sobre a sexualidade partisse de uma
perspectiva feminina, os símbolos
freudianos poderiam ser outros. “[A
mulh e r] inventaria equivalentes para
o falo; a boneca, encarnando a promessa
do bebê que virá no futuro, pode se tor-
nar um bem muito mais precioso que
o pênis. Há sociedades matriarcais nas
quais as mulheres detêm a posse dessas
máscaras nas quais o grupo encontra
alienação; nessas sociedades, o pênis
perde muito de sua glória.”
Não era o caso de Viena. As letras das
operetas que faziam sucesso na cidade,
na época de Freud, recorriam ao este-
reótipo mais negativo para retratar
suas personagens femininas: eram
mulheres frívolas, infiéis, maliciosas e
que caíam de amores por qualquer um
que lhes fizesse um elogio.
Freud, ainda que fosse rodeado de
amigas de quem admirava a inteligên-
cia, e que citasse ideias delas em di-
versos ensaios sobre a psicanálise, em
geral não pensava muito diferente dos
vizinhos mais machistas. Ainda mais
se o assunto fosse o papel das moças
na sociedade. O pai da psicanálise era
contra a mulher sair para trabalhar e
considerava o fim do mundo que uma
ou outra ganhasse mais do que o ma-
rido. A única “profissão” possível se-
ria o acúmulo de funções de gerente
do lar, fiscal da limpeza domiciliar e
gestora da educação das crianças: re-
sumindo bem, dona de casa. “Espero
que estejamos de acordo”, escreveu
um dia a sua querida esposa, Martha
Bernays, “em que administrar uma
casa e educar os filhos requer da pes-
soa tempo integral, e praticamente
elimina qualquer profissão”.
Esse lado conservador de Freud, em-
bora não o tenha feito recuar diante da
própria ousadia sobre a sexualidade
infantil, veio à tona quando ele tirou
conclusões a respeito do desenvolvi-
mento sexual da mulher. Principalmen-
te pelo seguinte: toda a sua teoria a
esse respeito parte de uma perspectiva
falocêntrica – se essa teoria fosse um
sistema solar, o pênis estaria no lugar
do Sol. E isso, em qualquer interpreta-
ção que se tenha, significa exatamente
o que Karen Horney disse: para Freud,
o homem vem primeiro, e é a base de
qualquer pensamento adaptado para a
mulher. A sexualidade feminina surge
aos olhos de Freud sempre através de
um filtro masculino. A tal ponto que,
para o austríaco, meninas são meninos
com defeito de fábrica.
A tal inveja
Para Freud, até que a puberdade chegue
com seus pelos e peitos, vigora entre
as crianças um monismo sexual – a
hipótese de que meninos e meninas
só admitem um único órgão para prá-
ticas sexuais, que é o pênis. O que a
menina reconhece em si, até então, é
seu clitóris – um tipo de pênis subde-
senvolvido. A compreensão de que tem
uma vagina – estrutura feminina por
excelência – só virá na fase genital, já
a partir dos 11 anos.
Na infância, portanto, não haveria
diferença entre masculino e feminino.
A criançada toda é menino – com ou
sem pênis – até prova em contrário.
E assim as criancinhas vão levando a
vida sem maiores conflitos até o pon-
to em que essa diferença anatômica é
notada. Entre os 3 e os 5 anos de ida-
de, na fase fálica, surge a primeira
curiosidade dos pequenos em diferen-
ciar mocinhos e mocinhas. E é aí que
as garotas terão uma descoberta de-
vastadora: a de que são “garotos de
segunda classe”, que vieram ao mun-
do com algo faltando.
Nas operetas que faziam sucesso em Viena
na época de Freud, as mulheres eram
retratadas como pessoas frívolas, infiéis,
maliciosas e que caíam de amores pelo pri-
meiro que aparecesse. O pai da psicanálise
associaria esses comportamentos a uma
fraqueza do superego na mente feminina.
imagem: Getty Images
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