O PODER DAS LETRAS 93
sapataria com um letreiro lindo de ferro, produzido
na década de 1940. O proprietário já o tinha removido
porque não queria pagar mais taxas camarárias. A loja
estava em decadência. Oferecemo-nos para ficar com
o letreiro.” E nasceu a ideia de criar uma colecção.
O casal estabeleceu uma meta: tentaria recuperar
pelo menos um letreiro por semana. Durante quatro
meses, cumpriu o objectivo, persuadindo os lojistas a
salvaguardar a memória e compreendendo uma ver-
dade mais fundamental: as lojas integram-se no quo-
tidiano dos bairros, fundem-se e tornam-se parte da
identidade colectiva. “Perante a vaga de destruição
natural que está a ocorrer em Lisboa, pareceu-nos
digno tentar salvaguardar parte desse património”,
diz Paulo Barata. Porque uma loja é muito mais do
que um estabelecimento comercial, tal como um le-
treiro tem um significado mais transcendente do que
um conjunto de metal, luzes e circuitos eléctricos.
Na exposição Cidade Gráfica, organizada pelo
programa MUDE Fora de Portas, em Lisboa, o casal
mostrou parte dos letreiros já salvaguardados e teste-
munhou as reacções emocionais de alguns visitantes.
“Algumas senhoras choraram quando viram letreiros
de lojas que tinham frequentado na infância”, conta
Rita Múrias. “Não são meras letras dispostas numa
fachada que se desligam de manhã. Muitos destes le-
treiros desencadeiam nostalgia, memórias da infân-
cia, das pessoas com quem se frequentava cada espa-
ço. As lojas desaparecem, mas essas memórias ficam.”
“A discussão com cada proprietário é quase como
um namoro”, brinca Paulo Barata. “Há uma fase de
conhecimento mútuo – nunca se consegue obter a
cedência de um letreiro na primeira reunião. Só de-
pois, quando o lojista percebe que o seu património,
terá uma segunda vida digna é que baixa as defesas
e cede aquilo que acarinhou durante muitos anos.”
Na fase corrente, com a renovação brutal que a ca-
pital está a promover, muitos letreiros acabam por
ser cedidos num momento dramático da vida das
lojas: “Alguns letreiros são cedidos porque a loja vai
fechar”, acrescenta Rita Múrias. “E é uma sensação
agridoce: estamos satisfeitos porque preservamos
um fragmento de história mas o lojista está desolado
porque o seu negócio vai fechar. Para ele, é o fim de
um projecto; para nós, é o início de outro.”
A par da recolecção de materiais gráficos, Rita Mú-
rias, no âmbito do seu doutoramento, tem trabalhado
a montante, investigando os processos camarários
de licenciamento dos letreiros de Lisboa (embora a
colecção do casal reúna, graças à generosidade de
outros parceiros, exemplares de letreiros recolhidos
também no Porto e em Coimbra). “É uma informa-
ção fascinante. Por vezes, temos no processo a do-
cumentação entregue para aprovação de um letreiro
anterior ao que lá existe agora”, conta. São peças de
um puzzle tridimensional de rotinas burocráticas e
de engenho gráfico – alguns dos letreiros de Lisboa
foram mesmo produzidos por grandes artistas tipo-
gráficos como o arquitecto Raul Tojal.
Noutras ocasiões, a documentação produz tam-
bém um retrato do país. O famoso letreiro de néon do
Brandy Constantino, que durante décadas dominou
a Praça do Rossio, em Lisboa, começou por ser cen-
surado. “As palavras estrangeiras tinham de ser apor-
tuguesadas. E a primeira memória descritiva desse
letreiro foi forçada a mudar brandy para brande.”
Paulo Barata e Rita Múrias reconhecem que a sua
colecção (a partir de agora, preservada em instalações
cedidas pela autarquia em Campolide) é uma gota de
água na diversidade tipográfica que então dominou a
cidade. É um instantâneo de uma era que se esfumou
sem que quase déssemos por isso. “No início do sécu-
lo XX, muitas fachadas eram pintadas. Hoje, não resta
uma. As cidades mudam e queremos salvaguardar uma
pitada da cidade que se perdeu”, resumem os designers.
Se tiver um letreiro do século XX à sua guarda,
não hesite. Contacte a equipa em letreiro.galeria@
gmail.com e ajude a preservar uma página da história
de Lisboa, a cidade das mil fachadas.^ j