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velmente o exemplo máximo: uma metrópole
deslumbrante, lar de mais de 37 milhões de pes-
soas e um dos centros urbanos mais ricos, seguros
e criativos do mundo.
Mesmo que não nos interesse muito a maneira
como as megacidades moldam o comportamento
humano, Tóquio não pode ser ignorada porque já
mudou a nossa vida. A cidade é o derradeiro mo-
delo social, o ponto de ligação entre o mundo e a
cultura japonesa.
O engenho criativo da cidade deve-se, em par-
te, ao facto de ter sido arrasada duas vezes nos úl-
timos 100 anos: primeiro pelo grande terramoto
de Kanto, em 1923, e, uma geração mais tarde, pe-
los bombardeamentos aéreos durante a Segunda
Guerra Mundial. As duas catástrofes obrigaram
os japoneses a sepultar sucessivamente a sua
história e a reconstruir a cidade, reimaginando
bairros, sistemas de transporte, infra-estruturas
e, até, dinâmicas sociais. O próprio mercado de
Tsukiji foi construído após o terramoto de Kanto
para substituir aquele que existira no centro da
cidade durante trezentos anos.
Na década de 1950, Tóquio reergueu-se e ad-
quiriu uma enorme densidade demográfica. Se-
gundo Edward Glaeser, essa foi uma razão para
o seu sucesso: a agitação criativa que acontece
quando se juntam pessoas de perfil etário e an-
tecedentes distintos, eliminando as barreiras ao
comércio e às ideias. Nesta edição dedicada às
cidades, não poderíamos ignorar Tóquio. Jane
Jacobs, escritora com enorme influência no pla-
neamento urbano, disse que a melhor maneira
de conhecer uma cidade, de sentir a força da sua
mistura de influências, é percorrê-la a pé.
Foi o que eu e o fotógrafo David Guttenfelder
fizemos. Durante várias semanas, atravessámos
Tóquio de uma ponta a outra, por vezes juntos,
frequentemente separados, por vezes em linha
recta, frequentemente saltando de uma zona
para outra, cruzando lentamente os bairros, as
zonas industriais, as cidades universitárias, as
estações de comboio, os mercados, os cemité-
rios, os templos e os santuários.
Já tínhamos os dois vivido no Japão e ambos
sabíamos que Tóquio talvez estivesse escondida
debaixo dos superlativos usados para descrevê-
-la. Conversámos com quase todas as pessoas
que encontrámos, tomámos nota de parte das
suas rotinas e rituais. Não conseguimos regis-
tar tudo, mas tentámos observar mais profun-
damente a cidade, ligando-a às pessoas que lhe
dão força com as suas vidas.
Apercebi-me então de que os nossos coletes
serviam, em parte, para a nossa segurança – para
não sermos esmagados pelo trânsito – mas tam-
bém para não nos esgueirarmos, colhendo os fru-
tos das lucrativas actividades de Tsukiji.
Todos os dias, cerca de 1.500 toneladas de pei-
xe, algas marinhas e invertebrados, provenien-
tes de todo o mundo, chegam às bancas do mer-
cado. Ao final do dia, essa enorme carga, com
um valor aproximado de 13,3 milhões de euros, é
escolhida, cortada em pedaços e remetida para
os revendedores. Quando lá cheguei, às 4h30, o
mercado já rugia há várias horas.
Centenas de homens corriam entre a névoa,
rindo-se e gritando, de cigarro preso nos dentes.
Agentes de segurança de luvas brancas conduzi-
ram-nos ao longo de uma pilha de caixas de es-
ferovite, algumas do tamanho de caixões, com
o interior manchado de sangue. Mais à frente,
num gigantesco armazém, lâminas de serra
guinchavam ao cortarem o peixe congelado.
A maior parte dos turistas viera assistir aos
famosos leilões de atum, onde peixes gigantes-
cos pescados em águas distantes são, por vezes,
vendidos por centenas de milhares de euros. No
entanto, comparado com o circo que acabára-
mos de presenciar, o leilão em si (quando lá che-
gámos) foi um tédio: os licitadores, calados, si-
nalizavam por gestos a sua oferta para refeições
de haute cuisine que seriam servidas em Tóquio,
Moscovo e Nova Iorque.
Às 10 horas, o leilão acalmou e eu escapei-
-me, sozinho, pelo mercado, conversando com
os peixeiros que lamentavam o iminente en-
cerramento das instalações. Horas mais tarde,
só se ouvia o motor das carrinhas de entregas,
enquanto as empilhadoras depositavam o peixe
na área de carga.
Perto da meia-noite, vagueei até um pequeno
santuário xintoísta, onde uma fileira de monu-
mentos de pedra honrava várias espécies de
criaturas marinhas comestíveis. Tsukiji fora gó-
tico, excitante, obsceno – um raro local onde o
verniz moderno e elegante da cidade estalava,
revelando um apetite bruto. Sentia-me exausto.
Um gato roçou-se aos meus pés. A pedra dian-
te de mim tinha a inscrição sushi-zuka, “o mo-
numento ao sushi.” Daqui por algumas horas,
tudo começaria novamente.
SE CONCORDAR com o economista Edward Glae-
ser, de Harvard, segundo o qual as cidades são a
maior invenção da humanidade, Tóquio é possi-