O Estado de São Paulo (2020-05-27)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-6:202 0052 7:
H6 Especial QUARTA-FEIRA, 27 DE MAIODE 2020 OESTADODES. PAULO


Leandro Karnal


l]


Aliás,


A


metáfora, belíssima, é do pa-
dre Antônio Vieira e não é a
primeira vez que me valho de-
la em meus textos. No seu sermão
do Espírito Santo, o jesuíta escre-
veu que alguns povos são difíceis de
ser mudados ou convertidos a uma
nova ideia. Necessitam de muito es-
forço e larga catequese. Seriam fei-
tos de mármore, ou seja, duríssi-
mos. Uma vez adquirida a forma ár-
dua com cinzel persistente, tor-
nam-se permanentes. Em oposi-
ção, outros povos seriam dóceis à
pregação, como o arbusto chamado
de murta. Nessa planta, o jardinei-
ro pode produzir formas graciosas
em poucos minutos com sua tesou-
ra de poda. O vegetal não resiste à
vontade daquele que o corta. Po-
rém, mal o cultivador esculpiu no-
va forma na maleável planta, galhos
rebeldes brotam. O padre Vieira
achava que os indígenas do Brasil
seriam como a murta. Na pena do
“imperador da língua portuguesa”:
“Há outras nações, pelo contrário


  • e estas são as do Brasil –, que rece-


bem tudo o que lhes ensinam, com
grande docilidade e facilidade, sem ar-
gumentar, sem replicar, sem duvidar,
sem resistir; mas são estátuas de mur-
ta que, em levantando a mão e a tesou-
ra o jardineiro, logo perdem a nova fi-
gura, e tornam a bruteza antiga e natu-
ral, e a ser mato como dantes eram. É
necessário que assista sempre a estas
estátuas o mestre delas: uma vez, que
lhes corte o que vicejam os olhos, para
que creiam o que não veem; outra vez,
que lhes cerceie o que vicejam as ore-
lhas, para que não deem ouvidos às fá-
bulas de seus antepassados; outra vez,
que lhes decepe o que vicejam as mãos
e os pés, para que se abstenham das
ações e costumes bárbaros da gentili-
dade. E só desta maneira, trabalhando
sempre contra a natureza do tronco e
humor das raízes, se pode conservar
nestas plantas rudes a forma não natu-
ral, e compostura dos ramos”.
A partir das figuras de linguagem do
inaciano, o antropólogo Eduardo Vi-
veiros de Castro fez um artigo belíssi-
mo e conhecido de todos na área sobre
a “inconstância da alma selvagem”.

Não tenho a pretensão de analisar
nem o padre Vieira nem Viveiros de
Castro. Apenas quero falar da dificul-
dade em lecionar atualmente. Nosso
aluno adolescente hoje não é nem
mármore nem murta: não são fáceis
de ser convencidos pela fala e não são
permanentes na nova forma. Os jo-
vens questionam muito (o que seria
bom em si) e sempre acham que aqui-
lo que eles sabem já é suficiente. Mui-
tos são resistentes a quaisquer novas
ideias. Instala-se o mármore no ouvi-
do e não floresce a murta no coração.
Lecionar é um exercício cada vez mais

desafiador à medida que reunimos o
pior dos dois mundos. O professor se
vê diante do duplo desafio. O primei-
ro deles é o de comprovar permanen-
temente que aquilo que ele estuda é
significativo e que pode levar a uma
mudança interna que transforma pa-
ra melhor. Ao mesmo tempo, com sua
tesoura na mão e trabalhando em uma
murta fértil, vê que a forma muda logo
após o corte. Nunca foi tão difícil dar
aula. Nós não temos a aparente docili-
dade do indígena que tudo ouve nem a
suposta segurança dos outros povos
que escutam com dificuldade, porém

edificam de forma duradoura. Todo
professor, em algum momento, já se
sentiu inútil ou falando para ouvidos
de “marmurta” ou “murtármore”. Em
outras palavras, temos o pior dos dois
mundos: a dureza de um e a inconstân-
cia do outro. Cada aula é uma conquis-
ta, um esforço diário de sedução e de
convencimento. Demanda densa re-
tórica e muitos exemplos concretos
para estimular a mudança de visão ou
aquisição de um novo hábito.
Para piorar, muitos pais (não to-
dos) imaginam o filho de puro e bem
lavrado ouro. Quando na infância o
pimpolho entregou aquele desenho
sem forma, garatujas mal-acabadas,
o olhar afetivo começou a insuflar:
“Que lindo!”. Sim, nada mais bonito
do que algo feito com afeto e vindo
da pessoa que você mais ama. Será
que, em algum momento, existirá a
reflexão de que é lindo para mim por-
que é do meu rebento, porém é me-
nos bonito fora desse quadrado cor-
dial? De tanto elogiar coisas assim,
não acabaríamos convencendo nos-
sos filhos e a nós de que o infante tem
o talento de Leonardo da Vinci e a
agudeza lógica de Isaac Newton?
Quem dá aulas sabe que eu não estou
inventando ou exagerando.
Crianças e jovens devem ser esti-
mulados sempre. Excesso de senso
crítico produz efeitos devastadores
na confiança e no empenho. Dosar

elogios justos pelo progresso em
algum campo sempre indicando
que deu um passo decisivo, porém
aquela redação não é o próximo
prêmio Nobel de literatura e aque-
la resposta foi divertida e propor-
cional a alguém de 13 anos. Vieira
analisou o material vegetal ou pét-
reo das almas discentes. Eu incluo
o jardineiro na reflexão.
Educar é um desafio. Respeitar
cada fase e saber que alguém que
começou a estudar formas literá-
rias ainda tem um longo caminho; e
que as perguntas originais de um
pré-adolescente em geometria nas-
cem do desconhecimento e não do
brilho genial e precoce de um novo
Pitágoras. Elogiar quando existe
um progresso, indicar que pode
crescer mais, que houve imperfei-
ções aqui e ali, dar perspectivas e
comparações e que, acima de tudo,
o erro é o mais sólido instrumento
de aprendizado da espécie huma-
na: eis alguns caminhos para andar
entre mármores e murtas.
Para nós, professores, uma rota:
criticar sem destruir, indicar onde
existiu conhecimento, mostrar um
caminho de aprendizado. Para to-
dos os pais: seu filho é inteligente,
porém, há outros na sala, igualmen-
te ou mais brilhantes. Mantenha a
esperança no mármore clássico e
na murta ecológica.

Elias Thomé Saliba ]


É amplamente conhecida a di-
vertida passagem de O Ingê-
nuo, de Voltaire, na qual o índio
Hurão, que havia deixado a
América para visitar a Inglater-
ra, é quase forçado a passar pe-
lo rito da confissão com um fra-
de, após este impingir-lhe a
epístola de S. Jacques: “Confes-
sai-vos uns aos outros”. Termi-
nada a confissão, o hurão obri-
ga o frade a trocar de lugar com
ele, e colocando-o de joelhos
anuncia que o religioso tam-
bém não sairia dali até que con-
fessasse todos os seus peca-
dos. Essa passagem é um cha-
mariz para Experiências de An-
tropologia Recíproca, um dos
quatro ensaios, sendo dois de-
les inéditos, de Umberto Eco,
reunidos no livro Migração e To-
lerância, publicado pela edito-
ra Record.
Como são ensaios derivados
de intervenções e conferên-
cias, realizadas entre 1997 e
2012, vemos um Eco muito
mais à vontade, sem perder a
verve, fluência e a erudição que
caracterizam sua obra. Suas re-
ferências históricas surpreen-
dem: para exemplificar como
diferentes civilizações criam
seus próprios calendários e res-
pectivas teogonias – e que a
cristã é apenas uma entre mui-
tas – retira lá do século 17 o obs-
curo herege Isaac de la Peyrè-
re, que revelou que cronolo-
gias chinesas eram muito mais
antigas que as hebraicas, aven-


tando a hipótese de que o peca-
do original envolvesse apenas
a posteridade de Adão, mas
não de outros povos, surgidos
muito tempo antes.
Num dos ensaios mais incisi-
vos, Eco procura mostrar que a
intolerância quase sempre
vem antes de qualquer doutri-
na, ou seja, a intolerância já
existe difusamente na vida coti-
diana e alcança até alguma po-
pularidade, antes de se consti-
tuir em seitas fundamentalis-
tas, como o integrismo ou o ra-
cismo pseudocientífico. A into-
lerância – argumenta – chega
mesmo a ter raízes biológicas,
manifesta-se entre os animais
como territorialidade, baseia-
se em relações emocionais,
muitas delas completamente
superficiais, mas renitentes:
não suportamos os que são di-

ferentes de nós porque têm a
pele de cor diferente, falam
uma língua que não compreen-
demos, ou porque comem rãs,
cães, macacos, porcos, alho, ou
são tatuados. Assim, não são as
doutrinas da diferença que pro-
duzem a intolerância selva-
gem, ao contrário, estas desfru-
tam de um fundo preexistente
de difusa intolerância. Foi as-
sim que o antissemitismo pseu-
docientífico surgiu no decor-
rer do século 19 e acabou trans-
formando-se em antropologia
totalitária e na mais perversa
prática industrial do genocídio
no século 20. Porém, não pode-
ria ter nascido se já não existis-
se um antissemitismo popular,
já fortemente disseminado – e
dissimulado – nos séculos ante-
riores. Com exemplos curio-
sos colhidos do universo me-

dieval e mesmo do mundo re-
nascentista, Eco demonstra
que todas as teorias e doutri-
nas da intolerância apenas nas-
ceram e exploraram um ódio
pelo diferente que já existia. Es-
crevendo em 2012, Eco obser-
va, de forma presciente, que o
novo fenômeno do antissemi-
tismo não é uma doença margi-
nal que afeta apenas uma mino-
ria lunática, mas o fantasma de
uma obsessão milenar.
Eco não menciona direta-
mente o conto de Voltaire, mas
o episódio serve como inspira-
ção para definir o que ele cha-
ma de antropologia recíproca:
não mais uns (ativos) obser-
vando outros (passivos), mas
uns e outros como represen-
tantes de culturas diversas ana-
lisando-se face a face e mos-
trando como podemos reagir
de maneiras diferentes, apren-
dendo com a diversidade. Ho-
je, como ontem, é tarefa difícil
lutar contra a intolerância sel-
vagem, porque diante da ani-
malidade pura o pensamento
esmaece. Pior ainda quando a
intolerância se faz doutrina: aí
já é muito tarde para vencê-la,
e aqueles que deveriam fazê-lo
tornam-se suas primeiras víti-
mas. Muito desta onda de into-
lerância acaba se deslocando
para as migrações em massa, as
quais, sobretudo em relação à
Europa, tornam-se fenômenos
incontroláveis que Eco, escre-
vendo em 1997, conclui com
um notável prognóstico: “No
próximo milênio (e como não
sou profeta não posso especifi-
car a data), a Europa será um
continente multirracial ou, se
preferirem, ‘colorido’. Se lhes
agrada, assim será; se não, as-
sim será da mesma forma.”
Afinal, o migrante, seja ele
quem for e de onde vier, sofre
na pele o trauma do desenraiza-
mento, mas também ensina li-
ções novas e aquela singular di-
versidade que cresce e se fertili-
za, ao eliminar fronteiras entre
o estranho e o conhecido. O
que faz lembrar da frase de Hu-
gues de Saint Victor, a qual nou-
tra obra, Eco traduziu direto
do latim: “Quem acha sua pá-
tria doce é ainda um tenro
aprendiz; quem acha que todo
solo é como o nativo, já é forte;
mas, perfeito é aquele para
quem o mundo inteiro é um lu-
gar estranho”.

]
É HISTORIADOR, PROFESSOR
TITULAR DA USP E COORDENADOR
DO SITE ‘HUMOR E HISTÓRIA’

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

MIGRAÇÃO


Livro do intelectual italiano reúne textos dos anos 1990 que já previam


uma Europa multiétnica e uma reação de intolerância contra estrangeiros


Globalização. Eco prega cooperação entre povos em livro

ENSAIOS INÉDITOS DE UMBERTO


ECO ANTECIPAM QUESTÃO ATUAL


YANNIS BEHR

AKIS/

REUTERS

Crise. Refugiado
sírio chegando à
Grécia em 2015

ANDREA COMAS/REUTERS

O Mármore


e a Murta


O erro é o mais sólido
instrumento de aprendizado
da espécie humana

MIGRAÇÃO E
INTOLERÂN-
CIA
Autor:
Umberto Eco
Editora: Record
96 págs., R$
29,90, R$ 19
em e-book
Free download pdf