6 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020
A roleta-russa da
abertura das escolas
A escola pública atende os segmentos populares, os filhos dos trabalhadores que, com a flexibilização da quarentena,
precisam voltar ao trabalho. A “normalidade” econômica não pode ser produzida sem os trabalhadores e sem
a escola que recebe seus filhos. Por isso, a abertura não está separada da flexibilização da quarentena.
Ela é um de seus principais sustentáculos
POR FERNANDO CÁSSIO E ANA PAULA CORTI*
VIDAS (DOS OUTROS...) EM JOGO PELA “RETOMADA DA ECONOMIA”
N
ove estados anunciaram em
julho o retorno das atividades
presenciais nas escolas para
agosto e setembro: Acre, Distri-
to Federal, Maranhão, Paraná, Piauí,
Rio Grande do Norte, Rondônia, San-
ta Catarina, São Paulo e Tocantins –
governados por partidos tão diferen-
tes quanto MDB, PCdoB, PSD, PT,
PSL, PSDB e PHS. Em cada um deles
há um cenário diverso de evolução e
controle da pandemia de Covid-19. A
densidade do diálogo dos governos
com a sociedade civil e sobretudo
com as organizações que represen-
tam os profissionais da educação é
igualmente díspar nesses estados.
São diversos os argumentos utili-
zados para defender a abertura das
escolas e o retorno às atividades pre-
senciais depois de meses de isolamen-
to. Nas redes de ensino, muitos ainda
apostam na possibilidade de “salvar”
o ano letivo de 2020, o que permitiria
economizar os esforços orçamentá-
rios e burocráticos primordiais a um
processo seguro de retomada e repo-
sição das atividades letivas.
Também é sabida a pressão das
escolas privadas – cujo funciona-
mento é regulamentado pelas secre-
tarias estaduais de educação – pelo
retorno. Muitas partem da premissa
de que suas melhores condições
estruturais lhes permitirão conter a
escalada de contágios a partir da
abertura. O Sindicato dos Estabeleci-
mentos de Ensino do Rio de Janeiro
(SinepeRio), em vídeo promocional
(https://bit.ly/video-SinepeRio),
afirmou que é hora de abrir as escolas
privadas. A mensagem da entidade é
tocante: “Vimos que a ciência é a
vacina. Estudos só confundiram.
Trancar todos em casa não é ciência.
Confinar é desconhecer, é ignorar, é
subtrair vida, é fragilizar, debilitar,
mexer com o emocional. As crianças
precisam voltar a se relacionar, brin-
car, refazer laços, amizades, rever
seus amigos. Hora de ref lorir. Recriar
no novo tempo. O sol precisa voltar a
brilhar”.
Para cada cidade do país – para
cada bairro, em muitos casos – há
uma estatística de infecções e de
mortes por Covid-19 que se relaciona
a dinâmicas territoriais e a condições
muito específicas. O Brasil tem cerca
de 48 milhões de estudantes na edu-
cação básica, 75% deles em escolas
públicas, a maioria das quais em con-
dições muito diferentes das que fi-
nanciam o SinepeRio e patrocinam
seu marketing agressivo disfarçado
de mensagem de esperança. Se a ma-
nutenção do fechamento das escolas
equivale a “subtrair a vida”, o que di-
zer de uma abertura que arrisca vidas
em sentido literal?
Ainda que a maior parte das pro-
postas de abertura seja escalonada,
em esquemas de rodízio, o resultado
líquido da operação é o mesmo: abrir
escolas implica mobilizar um quarto
da população brasileira a sair de casa
todos os dias, a utilizar o transporte
público, aumentar seu tempo na rua,
no comércio, em filas nos portões das
escolas. Além disso, escolas são lo-
cais inerentemente adensados, por-
quanto espaços de contato e de pro-
dução de sociabilidades.
Algumas poucas escolas privadas
de elite nas grandes cidades vêm con-
tratando empresas ou hospitais pri-
vados de renome para o desenvolvi-
mento de protocolos que garantam a
segurança epidemiológica de seus
estudantes e profissionais, mas isso
está longe de ser a realidade da maio-
ria das escolas privadas e, sobretudo,
das escolas municipais e estaduais.
Apesar de as entidades patronais as-
segurarem que o sol já pode brilhar
nas escolas particulares, a dúvida
permanece. Um levantamento re-
cente^1 mostra que 40% dos estudan-
tes matriculados em estabelecimen-
tos privados não retornarão à escola
em 2020 por decisão das famílias.
Levando água para o moinho da
abertura das escolas, o Conselho Na-
cional de Educação (CNE) aprovou
em 7 de julho o Parecer CNE/CP n.
11/2020, com orientações educacio-
nais para a realização de aulas e ati-
vidades pedagógicas presenciais e
não presenciais no contexto da pan-
demia. Embora o parecer não deixe
de sublinhar que a retomada das ati-
vidades presenciais depende da ga-
rantia de “condições de saúde e de se-
gurança aos estudantes e
profissionais da educação”, o argu-
mento principal das orientações fun-
damenta-se em uma série de estudos
- incluindo um da consultoria Mc-
Kinsey – sobre o impacto do fecha-
mento das escolas em aprendizagens
medidas por testes de proficiência.
O CNE também apresenta algu-
mas pesquisas sobre o alcance limi-
tado das atividades remotas ofereci-
das, que prejudicaram milhões de
estudantes da escola pública. Como
temos formulado, ao selecionar so-
mente as frações da população esco-
lar com condições de acessar as ativi-
dades, um grande número de
políticas educacionais emergenciais
implantadas durante a pandemia
produziram uma maciça discrimina-
ção educacional nas redes públicas
de ensino.^2
A argumentação do CNE, centra-
da na noção mal definida de “direitos
de aprendizagem”, que deveriam ser
garantidos a todo custo – remota ou
presencialmente –, também induz o
movimento de abertura das escolas.
Como a exclusão causada pela oferta
remota é um fato dado, a única forma
de reverter esse quadro seria planejar
uma abertura segura e escalonada
das escolas com vistas a recuperar o
tempo perdido e a “aprendizagem”,
isto é, os resultados nas avaliações
em larga escala. Tal raciocínio eco-
nomicista chega ao paroxismo no re-
cente estudo do Insper, que concluiu
que a interrupção das aulas durante a
pandemia poderia reduzir o PIB do
país em até 23%, em razão da perda
de renda sofrida pelos jovens por
conta do déficit de aprendizagem.^3
A pressão “econômica” pela aber-
tura das escolas, apesar disso tudo,
não é prerrogativa de empresários
que simplificam a complexidade dos
processos educativos para chanta-
gear governos de forma direta ou em
coligação com o CNE. Se os estudan-
tes das escolas privadas, ainda que
estas lhes queiram garantir o brilho
do sol, podem permanecer em casa
neste ano de 2020, o mesmo não é ne-
cessariamente verdade para os estu-
dantes das escolas públicas – espe-
cialmente os mais jovens,
matriculados nas creches e pré-esco-
las. Para as famílias da escola públi-
ca, a necessidade de trabalhar convi-
ve com o medo de uma abertura mal
planejada e com a insegurança sobre
a falta de capacidade do Estado de
proteger a saúde de crianças, adoles-
centes e profissionais da educação.
DECISÕES UNILATERAIS
Em São Paulo, o eventual retorno às
aulas presenciais em setembro movi-
mentará 1 milhão de professores e
outros profissionais da educação e
mais 13,3 milhões de estudantes em
todas as etapas escolares e redes pú-
blicas e privadas (cerca de 30% da po-
pulação do estado). Os protocolos de
segurança divulgados pelo governo
paulista para a reabertura das esco-
las trazem um conjunto de diretrizes
classificadas como “obrigatórias” ou
“recomendáveis”.^4
A insuficiência dessas diretrizes
ref lete a própria insuficiência de re-
cursos financeiros para a implemen-
tação de protocolos mais robustos
para a proteção das comunidades es-
colares, o que gera apreensão de es-
tudantes, famílias e profissionais da
educação. O governo Doria não indi-
cou que providências concretas serão
tomadas pela Seduc-SP para viabili-
zar o cumprimento das diretrizes. De
toda forma, só uma pequena parte
delas é de fato “obrigatória”: incenti-
var a lavagem de mãos ou higieniza-
ção com álcool em gel após tossir ou
espirrar, por exemplo, é medida ape-
nas “recomendável”.
A abstração das condições mate-
riais das escolas, que marca as políti-