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(Antfer) #1

Banco Central do Brasil


Revista Época/Nacional - Colunistas
sexta-feira, 31 de julho de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

cenários e mais cenários sobre como o amigo
descobriu a traição e o que haverá de fazer
com a descoberta. Mesmo já tendo lido esse
conto inúmeras vezes, eu o releio com o
coração nas mãos e os lábios secos. Em
determinado momento, a rua interditada por um
acidente, Camilo se vê diante da casa da
cartomante. Após alguma relutância, cede à
tentação de aplacar a aflição com a leitura das
cartas, do destino que lhe aguarda, aquele em
que afirmara não acreditar. A cartomante o
recebe e o tranquiliza. Camilo, aliviado, ruma
para a casa do amigo rindo de si, de sua
angústia, dos cenários que havia imaginado.
Quando chega, encontra Vilela transtornado.
Ao chão coberto de sangue, Rita, morta. Vilela
aponta o revólver e atira.


As reiteradas advertências de alguns
economistas sobre a inevitabilidade de
disparadas inflacionárias e crises fiscais têm
gosto de cartomancia, e eles têm se
comportado como Camilos. Confiam
cegamente em tudo que suas cartas e contas
lhes dizem sem atinar para a intuição, que não
precisa ser entendida misticamente e pode ser
tomada como um sentido que nos ajuda a nos
orientarmos no mundo. O problema é que a
economia, em tempos de crise e de ruptura,
não obedece às cartas, tampouco às contas
baseadas em extrapolações do passado.
Tomemos o caso da dívida. Fosse o Brasil
igual ao que já foi um dia, uma razão dívida/PIB
de mais de 80% e perto de extrapolar os 100%
até o início de 2021 seria motivo para uma
crise fiscal hoje. Ressalto: hoje, nem mesmo no
futuro imaginado por alguns economistas.
Contudo, o que se vê é a apreensão natural
dos investidores externos e... nada mais. Os
mercados continuam a acreditar em retomada,
o que, por sinal, é incompatível com
quebradeira: não se trata, a meu ver, de uma
crença justificada, mas seu desacerto não nos
interessa aqui. O governo permanece perdido.


O Congresso tenta encontrar saídas em meio
ao alarde desses economistas, que voltaram a
bradar “reformas, já!”.

Há muito o que fazer antes disso na economia,
já que a crise está longe de acabar e a
pandemia em breve nos levará aos 100 mil
mortos. Precisamos dar conta de um teto de
gastos que não nos serve hoje; nem que para
isso tenhamos de estender o decreto de
calamidade, de modo a podermos continuar
agindo como se ele não existisse. Precisamos
destinar recursos para a saúde. Precisamos
prorrogar o auxílio emergencial, em sua forma
atual ou outra. Precisamos obter recursos para
tanto, o que pode ser feito tributando lucros
hoje não tributados, removendo isenções e
descontos do imposto de renda dos mais
abastados, bem como alterando as alíquotas
de tributação sobre a renda de forma a torná-
las bem mais progressivas. Haverá elevação
da carga tributária? Sim, porque se trata de
uma crise: uma crise inédita.

E a crise fiscal, como fica? Em um mundo de
taxas de juros nos países maduros próximas de
zero, o tempo para carregar dívidas mais
elevadas foi prolongado. Isso não significa que
o Brasil pode fazer o que bem entende em
matéria fiscal. Mas, com mais tempo, há mais
espaço para se pensar nas medidas para sair
da crise. A ordem é esta: primeiro, saímos da
crise; depois, pensamos em como vamos dar
conta dos ajustes.

Camilo errou ao não confiar na sua intuição e
acabou morto. Uma intuição bem informada é a
única coisa que nos resta quando o passado já
não ilumina como antes o presente. Tratemos
de usá-la com sabedoria. As cartas não são
confiáveis.

Assuntos e Palavras-Chave: Cenário Político-
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