POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO (do pensamento único à consciência universal) Milton Santos

(mariadeathaydes) #1

Para exercer a competitividade em estado puro e obter o dinheiro em estado puro, o
poder (a potência) deve ser também exercido em estado puro. O uso da força acaba se tornando uma
necessidade. Não há outro telos, outra finalidade que o próprio uso da força, já que ela é
indispensável para competir e fazer mais dinheiro; isso vem acompanhado pela desnecessidade de
responsabilidade perante o outro, a coletividade próxima e a humanidade em geral.
Por exemplo, a idéia de que o desemprego é o resultado de um jogo simplório entre
formas técnicas e decisões microeconômicas das empresas é uma simplificação, originada dessa
confusão, como se a nação não devesse solidariedade a cada um dos seus membros. O abandono da
idéia de solidariedade está por trás desse entendimento da economia e conduz ao desamparo em que
vivemos hoje. Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e
alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência,
medo do outro. Tal medo se espalha e se aprofunda a partir de uma violência difusa, mas estrutural,
típica do nosso tempo, cujo entendimento é indispensável para compreender, de maneira mais
adequada, questões como a dívida social e a violência funcional, hoje tão presentes no cotidiano de
todos.


A perversidade sistêmica

Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações características do período
atual, a realidade pode ser vista como uma fábrica de perversidade. A fome deixa de ser um fato
isolado ou ocasional e passa a ser um dado generalizado e permanente. Ela atinge 800 milhões de
pessoas espalhadas por todos os continentes, sem exceção. Quando os progressos da medicina e da
informação deviam autorizar uma redução substancial dos problemas de saúde, sabemos que 14
milhões de pessoas morrem todos os dias, antes do quinto ano de vida.
Dois bilhões de pessoas sobrevivem sem água potável. Nunca na história houve um tão
grande número de deslocados e refugiados. O fenômeno dos sem-teto, curiosidade na primeira
metade do século XX, hoje é um fato banal, presente em todas as grandes cidades do mundo. O
desemprego é algo tornado comum. Ao mesmo tempo, ficou mais difícil do que antes atribuir
educação de qualidade e, mesmo, acabar com o analfabetismo. A pobreza também aumenta. No fim
do século XX havia mais 600 milhões de pobres do que em 1960; e 1,4 bilhão de pessoas ganham
menos de um dólar por dia. Tais números podem ser, na verdade, ampliados porque, ainda aqui, os
métodos quantitativos da estatística enganam: ser pobre não é apenas ganhar menos do que uma
soma arbitrariamente fixada; ser pobre é participar de uma situação estrutural, com uma posição
relativa inferior dentro da sociedade como um todo. E essa condição se amplia para um número cada
vez maior de pessoas. O fato, porém, é que a pobreza tanto quanto o desemprego agora são
considerados como algo “natural”, inerente ao seu próprio processo. Junto ao desemprego e à
pobreza absoluta, registre-se o empobrecimento relativo de camadas cada vez maiores graças à
deterioração do valor do trabalho. No México, a parte de trabalho na renda nacional cai de 36% na
década de 1970 para 23% em 1992. Vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção
social, apanágio do modelo neoliberal, que é também, criador de insegurança.
Na verdade, a perversidade deixa de se manisfestar por fatos isolados, atribuídos a
distorções da personalidade, para se estabelecer como um sistema. Ao nosso ver, a causa essencial

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