POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO (do pensamento único à consciência universal) Milton Santos

(mariadeathaydes) #1

vetores da globalização, que neles se instalam para impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles se
produz uma contra-ordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados.
Crescentemente reunidas em cidades cada vez mais numerosas e maiores, e experimentando a
situação de vizinhança (que, segundo Sartre, é reveladora), essas pessoas não se subordinam de
forma permanente à racionalidade hegemônica e, por isso, com freqüência podem se entregar a
manifestações que são a contraface do pragmatismo. Assim, junto à busca da sobrevivência, vemos
produzir-se, na base da sociedade, um pragmatismo mesclado com a emoção, a partir dos lugares e
das pessoas juntos. Esse é, também, um modo de insurreição em relação à globalização, com a
descoberta de que, a despeito de sermos o que somos, podemos também desejar ser outra coisa.
Nisso o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um
espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a
reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço
exerce um papel revelador sobre o mundo.
Globais, os lugares ganham um quinhão (maior ou menor) da “racionalidade” do
“mundo”. Mas esta se propaga de modo heterogêneo, isto é, deixando coexistirem outras
racionalidades, isto é, contra-racionalidades, a que, equivocadamente e do ponto de vista da
racionalidade dominante, se chamam “irracionalidades”. Mas a conformidade com a Razão
Hegemônica é limitada, enquanto a produção plural de “irracionalidades” é ilimitada. É somente a
partir de tais irracionalidades que é possível ampliação da consciência.
Se este é um dado geral, ele se dá com variações segundo as coletividades e os
subespaços. Vejam-se, por exemplo, as diferenças, hoje, entre campo e cidade. No campo, as
racionalidades da globalização se difundem mais extensivamente e mais rapidamente. Na cidade as
irracionalidades se criam mais numerosa e incessantemente que as racionalidades, sobretudo
quando há, paralelamente, produção de pobreza.
É este o fundamento da esquizofrenia do lugar. Tal esquizofrenia se resolve a partir do
fato de que cada pessoa, grupo, firma, instituição realiza o mundo à sua maneira. A pessoa, o grupo,
a firma, a instituição constituem o de dentro do lugar, com o qual se comunicam sobretudo pela
mediação da técnica e da produção propriamente dita, enquanto o mundo se dá para a pessoa, grupo,
firma, instituição como o de fora do lugar e por intermédio de uma mediação política. A mediação
técnica e produção correspondente, local e diretamente experimentadas, podem não ser inteiramente
compreendidas, mas são vividas como um dado imediato, enquanto a mediação política,
frequentemente exercida de longe e cujos objetivos nem sempre são evidentes, exige uma
interpretação mais filosófica.
Uma filosofia banal começa por ser instalar no espírito das pessoas com a descoberta,
autorizada pelo cotidiano, da não-autonomia das ações e dos seus resultados. Este é um dado
comum a todas as pessoas, não importa a diferença de suas situações. Mas outra coisa é ultrapassar
a descoberta da diferença e chegar à sua consciência.


Uma pedagogia da existência

Isso, todavia, não é tudo. A consciência da diferença pode conduzir simplesmente à
defesa individualista do próprio interesse, sem alcançar a defesa de um sistema alternativo de idéias
e de vida. De um ponto de vista das idéias, a questão central reside no encontro do caminho que vai

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