da heterogeneidade criadora.
23.Um emaranhado de técnicas: o reino do artifício e da escassez
Sabemos já que as técnicas presentes em uma dada situação não são homogêneas.
Enquanto as técnicas hegemônicas se dão em redes, além delas outras técnicas se impõem. Mas, em
uma dada situação, todas as técnicas presentes acabam por ser inextricáveis. Tal solidariedade não
é, propriamente, entre as técnicas, mas o fruto da vida solidária da sociedade.
Do artifício à escassez
Hoje, tanto os objetivos quanto as ações derivam da técnica. As técnicas estão, pois, em
toda parte: na produção, na circulação, no território, na política, na cultura. Elas estão também – e
permanente – no corpo e no espírito do homem. Vivemos todos num emaranhado de técnicas, o que
em outras palavras significa que estamos todos mergulhados no reino do artifício. Na medida em que
as técnicas hegemônicas, fundadas na ciência e obedientes aos imperativos do mercado, são hoje
extremamente dotadas de intencionalidade, há igualmente tendência à hegemonia de uma produção
“racional” de coisas e de necessidades; e desse modo uma produção excludente de outras
produções, com a multiplicação de objetos técnicos estritamente programados que abrem espaço
para essa orgia de coisas e necessidades que impõem relações e nos governam. Cria-se um
verdadeiro totalitarismo tendencial da racionalidade – isto é, dessa racionalidade hegemônica,
dominante - , produzindo-se a partir do respectivo sistema certas coisas, serviços, relações e idéias.
Esta, aliás, é a base primeira da produção de carências e de escassez, já que uma parcela
considerável da sociedade não pode ter acesso às coisas, serviços, relações, idéias que se
multiplicam na base da racionalidade hegemônica.
A situação contemporânea revela, entre outras coisas, três tendências: 1. uma produção
acelerada e artificial de necessidades; 2. uma incorporação limitada de modos de vida ditos racionais;
- uma produção limitada de carência e escassez.
Nessa situação, as técnicas a velocidade, a potência criam desigualdades e,
paralelamente, necessidades, porque não há satisfação para todos. Não é que a produção necessária
seja globalmente impossível. Mas o que é produzido – necessária ou desnecessariamente – é
desigualmente distribuído. Daí a sensação e, depois, a consciência de escassez: aquilo que falta a
mim, mas que o outro mais bem situado na sociedade possui. A idéia vem de Sartre, quando registra
que “não há bastante para todo o mundo”. Por isso o outro consome e não eu. O homem, cada
homem, é afinal definido pela soma dos possíveis que lhe cabem, mas também pela soma dos seus
impossíveis.
O reino da necessidade existe para todos, mas segundo formas diferentes, as quais
simplificamos mediante duas situações – tipo: para os “possuidores”, para os “não possuidores”.
Quanto aos “possuidores”, torna-se viável, mediante possibilidades reais ou artifícios
renovados, a fuga à escassez e a superação ainda que provisória da escassez. Como o processo da
criação de necessidades é infinito, impõe-se uma readaptação permanente. Cria-se um círculo vicioso