Chomsky_Noam_-_lucro_ou_as_pessoas

(mariadeathaydes) #1

como elas, que conhece as aflições do povo, mas por fidalgos, comerciantes, advogados e outros
“homens responsáveis”, a quem se podia confiar a defesa dos privilégios.
A doutrina dominante foi claramente expressa pelo presidente do Congresso Continental e
primeiro presidente da Corte Suprema, John Jay: “As pessoas a quem o país pertence devem
governá-lo”. Ficava, no entanto, uma pergunta: a quem pertence o país? Essa pergunta foi
respondida pela ascensão das grandes empresas privadas e das estruturas concebidas para
protegê-las e defendê-las, ainda que continue não sendo um trabalho fácil obrigar o público a se
manter no papel de espectador.
Os Estados Unidos são, certamente, o mais importante caso a se estudar para quem quer
compreender o mundo de hoje e o de amanhã. Uma das razões é o seu poder incomparável. Outra,
a estabilidade de suas instituições democráticas. Além disso, os Estados Unidos foram o que pode
haver de mais parecido com uma tabula rasa. A América pode ser “tão feliz quanto queira”,
observou Thomas Payne em 1776: “Ela é uma folha de papel em branco”. As sociedades nativas
foram eliminadas em sua maior parte. Há também poucos resíduos das estruturas européias
originais, o que é uma das razões da relativa fragilidade do seu contrato social e seus sistemas de
suporte, que em geral tinham raízes em instituições pré-capitalistas. E, num grau incomum, a
ordem sóciopolítica foi conscientemente planejada. No estudo da História, não se podem construir
experimentos, mas os Estados Unidos estão tão próximos quanto possível do “caso ideal” de
democracia capitalista de estado.
O grande arquiteto dessa ordem foi o astuto pensador político James Madison, cujas opiniões
prevaleceram em ampla medida. Nas discussões sobre a Constituição, Madison observou que, se na
Inglaterra as eleições “fossem abertas a todas as classes de indivíduos, a riqueza dos proprietários
de terras correria perigo. Cedo viria uma lei de reforma agrária”, concedendo terras aos que não a
possuem. O sistema constitucional deve ser concebido de modo a evitar esse tipo de injustiça e
“assegurar os interesses permanentes do país”, que são os direitos de propriedade.
Há, dentre os estudiosos de Madison, um consenso de que “a Constituição foi um documento
intrinsecamente aristocrático, concebido para conter as tendências democráticas da época”,
conferindo poder aos “melhores” e excluindo os que não eram ricos, bem-nascidos ou proeminentes
no exercício do poder político (Lance Banning). A responsabilidade primeira do governo “é proteger a
minoria opulenta da maioria”, declarou Madison. Esse tem sido o princípio orientador do sistema
democrático, desde suas origens até os dias de hoje.
Em público, Madison falava dos direitos das minorias em geral, mas é bem claro que tinha
em mente uma minoria em particular: a “minoria opulenta”. A teoria política moderna enfatiza a
crença de Madison de que “num governo livre e justo, tanto os direitos da propriedade como os das
pessoas devem ser eficazmente protegidos”. Aqui também vale a pena analisar a doutrina com mais
atenção. Não existem direitos da propriedade, mas direito à propriedade, ou seja, direito das
pessoas que têm propriedades. Posso ter direito ao meu automóvel, mas o meu automóvel não tem
nenhum direito. O direito à propriedade também difere de outros direitos no sentido de que a
fruição da propriedade por uma pessoa priva uma outra desse mesmo direito: se sou proprietário do
meu automóvel, você não pode sê-lo; mas, numa sociedade livre e justa, a minha liberdade de
expressão não limita a sua. O princípio de Madison, portanto, é o de que o governo deve proteger os
direitos das pessoas em geral, mas também proporcionar garantias adicionais e especiais para os
direitos de uma classe de pessoas, a dos detentores de propriedade.

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