Chomsky_Noam_-_lucro_ou_as_pessoas

(mariadeathaydes) #1

Graças a esses métodos, o país mais pobre do hemisfério foi transformado num dos mais
importantes compradores do arroz produzido nos Estados Unidos, enriquecendo empresas norte-
americanas beneficiadas por subsídios públicos. Quem teve a sorte de receber uma boa educação
ocidental pode sem dúvida explicar que os benefícios irão se derramar sobre os camponeses e
favelados haitianos – em última instância.
Esse exemplo digno de prêmio nos diz ainda mais sobre o significado e as implicações da
vitória da “democracia e do livre mercado”.
Os haitianos parecem compreender a lição, ainda que os gerentes de doutrina do Ocidente
prefiram ver a coisa de modo diverso. O pleito parlamentar de abril de 1997 teve um
comparecimento de “magros cinco por cento” de eleitores, informou a imprensa, levantando desse
modo a seguinte questão: “Teria o Haiti frustrado as esperanças dos Estados Unidos?”^62
Sacrificamo-nos tanto para levar-lhes a democracia, mas eles se mostram mal-agradecidos,
indignos do nosso esforço. Pode-se entender por que os “realistas” insistem para que nos
mantenhamos afastados das cruzadas pelo “meliorismo global”.
Atitudes semelhantes persistem em todo o hemisfério. Pesquisas revelam que, na América
Central, a política suscita “tédio”, “desconfiança” e “indiferença” em proporções que superam de
longe o “interesse” e o “entusiasmo” de “um público apático... que se sente espectador de seu
sistema democrático” e manifesta “um pessimismo geral com respeito ao futuro”. O primeiro
levantamento de opinião patrocinado pelos Estados Unidos na América Latina encontrou as
mesmas respostas: “A mensagem mais alarmante da pesquisa”, comentou o seu coordenador
brasileiro, foi “a percepção popular de que somente a elite se beneficiou com a transição para a
democracia”.^63 Estudiosos latino-americanos observam que a recente onda de democratização
coincidiu com as reformas econômicas neoliberais, que prejudicaram a maioria das pessoas,
levando a uma apreciação cínica dos trâmites democráticos formais. A introdução de programas
similares no país mais rico do mundo teve efeitos similares, como já discutido.
Retomemos à doutrina prevalecente de que “a vitória norte-americana na guerra fria” foi a
vitória da democracia e do livre mercado. No que diz respeito à democracia, a doutrina é
parcialmente verdadeira, embora precisemos compreender o que se entende por “democracia” nesse
caso: controle de cima para baixo “para proteger a minoria opulenta da maioria”. E que dizer do
livre mercado? Aqui, também, vemos que a doutrina está muito distante da realidade, como ilustra
o exemplo do Haiti.
Vejamos uma vez mais o caso do NAFTA, acordo destinado a amarrar o México numa
disciplina econômica que protege os investidores dos perigos de uma “abertura democrática”. Não é
um “acordo de livre comércio”. Ao contrário, é um acordo fortemente protecionista, projetado para
obstruir os competidores da Europa e do leste asiático. Além disso, ele compartilha com os acordos
globais alguns princípios antimercado, restrições radicais aos “direitos de propriedade intelectual”
jamais aceitas pelas sociedades ricas durante seus processos de desenvolvimento, mas que agora
elas pretendem utilizar para proteger as empresas sediadas em seus países – para destruir a
indústria farmacêutica dos países mais pobres, por exemplo – e, eventualmente, bloquear inovações
tecnológicas, como os processos de produção aperfeiçoados para produtos já patenteados no
sistema tradicional. Não se anseia mais pelo progresso do que pelo mercado, a menos que traga
benefícios para os que contam.

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