54 / A loucura da razão econômica
as necessidades de consumo determinam a produção. Há uma interação entre os dife
rentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo orgânico.18
A totalidade aqui não é a de um organismo único como o corpo humano. Trata-
-se de uma totalidade ecossistêmica com múltiplas espécies de atividades concorren
tes ou colaborativas, com uma história evolutiva aberta a invasões, novas divisões
de trabalho e novas tecnologias, um sistema em que algumas espécies e subsistemas
desaparecem, enquanto outros se formam e florescem, ao mesmo tempo que os flu
xos de energia criam mudanças dinâmicas que apontam para toda sorte de possibi
lidades evolutivas. Marx apreciava analogias e metáforas científicas, mas as analogias
orgânicas e evolutivas têm proeminência em sua obra. Como ele assinala no prefácio
à primeira edição do Livro I d’0 capital, seu “ponto de vista [...] apreende o de
senvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-
-natural”19. Grande admirador de Darwin, Marx busca fazer para as ciências sociais
e históricas aquilo que Darwin fez nas ciências naturais com sua teoria da evolução.
Dissecar plenamente essa totalidade orgânica exigiría no mínimo uma fusão da
perspectiva dos três livros d’O capital em uma teoria holística. Marx jamais tentou
fazer isso. Os vários planos de pesquisa esboçados nos Grundrisse indicam que outros
volumes sobre temas como concorrência, Estado (e provavelmente tributos), merca
do mundial e crises seriam necessários para concluir o projeto20. Marx não chegou
nem perto de realizar esse objetivo. Mas reconheceu os complexos caminhos em que
instabilidades entrelaçadas e entrecruzadas no ecossistema orgânico que constitui o
capital provavelmente produziríam crises. “As contradições existentes na produção
burguesa”, escreveu, “são reconciliadas por um processo de ajuste que se manifesta
ao mesmo tempo, entretanto, na forma de crises, [em que ocorre] a fusão violenta de
fatores desconexos operando independentemente uns dos outros, embora correlacionados.”21
NOTA SOBRE A RELEVÂNCIA POLÍTICA
Evidentemente alguém me perguntará em algum momento sobre a relevância polí
tica dessa visualização. Minha resposta é que ela ajuda a situar questões e propostas
no contexto de certa compreensão da circulação do capital e, com isso, permite
18 Ibidem, p. 53.
19 Idem, O capital, Livro I, cit., p. 53.
20 Para uma discussão sistemática dos diversos pianos que Marx elaborou, ver Román Rosdolsky, The
Making o f Marxs Capital, cit.
21 Karl Marx, Theories o f Surplus Valué, Part 3 (Londres, Lawrence and Wishart, 1972), p. 120.