Sexta-feira,21deagostode2020|Valor| 19
A
pandemia ora em cursoaceleraa
confrontação estratégica entre
EUAe China.O relacionamento
bilateraldesdea fundaçãoda Re-
públicaPopularem 1949teve um início
promissor,com ahábil jogadados EUA,
conduzidapor HenryKissingere Richard
Nixon(1913-1994)ao iníciodos anos 1970,
de abrirdiálogocom aChinano maisalto
nível.Os EUA tinhammotivação estratégica
para aaproximaçãocom a RPC:reforçar sua
posiçãoperanteobloco soviéticono con-
textoda GuerraFria,tirandoproveitoda
tensãoentãoexistenteentrePequimeMos-
cou. Nas décadasseguintesprevaleceuum
climapositivoentreWashingtonePequim.
Predominava nos EUA umavisão benigna
da China. Havia naquelepaís expectativa de
que, com mais prosperidade, o regimechinês
setornassealgomaisliberal,mais“democráti-
co”.Nastrêsdécadasdoregimemaoísta,aChi-
na, submetidaaumregimetotalitário,tinha
sofrido com seguidasondas de instabilidade
políticae dificuldades econômicas. Posterior-
mente, sob a liderança de Deng Xiaoping
(1904-1997),o país progrediuenormemente
graçasao processo de reformas eaberturaao
exterior.Agoraoquadromudoutotalmente.
AChina passoua ser vista nos EUA —nos
meiospolíticose de governo, na academia,
na imprensa—ena opiniãopúblicacomo
potência rival,adversáriae, em algunsseto-
res, comoinimigacom a qual até mesmoa
hipótesede umaguerranão podeser des-
cartada.Essa mudançajá se fizerasentirna
gestãode Obama, quandose cristalizou em
Washingtonapercepçãode que aascensão
da Chinatinhadeslocadooeixo maisdinâ-
micoda economia internacionaldo Oci-
denteparaaÁsia,edequeaomesmotempo
surgiaumnovodesafionoplanomilitar.
Comaascensãoao poderde Xi Jinping
abriu-sena Chinanovaetapa,de afirmação
assertiva, até agressiva,do poderioeconô-
mico,militar e tecnológico do país.Foi
abandonadaaposturade discriçãoe come-
dimentoda era Deng.Pesadosinvestimen-
tos foramfeitosparaamodernizaçãodas
Forças Armadas,com prioridadepara cons-
truçãode uma Marinhacapazde desafiaro
domínio que os EUA detêmnoPacíficodes-
deaSegundaGuerraMundial(1939-1945).
O presidenteTrumpseguepolíticaexter-
na de retraimento,quase isolacionista.Mas,
de outraparte,aumentasubstancialmente
os gastosmilitares, paraperpetuarainal-
cançável hegemonia bélicadopaís no pla-
no mundial.E engajou-senuma“guerraco-
mercial”comaChina,porcontadosdéficits
sofridospelosEUAnoplanobilateral.
Essa “guerra” faz partede uma estratégia
maisamplade “contenção” da China,àse-
melhançado que fora feito,demaneiraexi-
tosa,com a UniãoSoviéticana GuerraFria.
Setoresmaisradicaisda CasaBrancaque-
remir maislonge,passandoda“contenção”
paraumacompleta“ruptura”,comtotalse-
paraçãoentreosdoispaíses.
Ahipótesede uma tal separaçãoteria grave
consequência:aumentodo risco de um conflito
bélico, o que seriacatastróficopara toda a co-
munidadeinternacional.AnovaposturadaChi-
na, tantono planodomésticoquantono exter-
no,temcausadodesgastenaimagemdopaís.
Com Xi, desfizeram-se por completo as ilu-
sões de alguma “democratização”. Isso come-
çou com a empolgação total do poder por ele,
ao abrircaminhopara suaperpetuação no
governoeassumirsozinhoostrêscargosmais
importantes:aPresidênciadaRepública,aSe-
cretaria-GeraldoPartidoComunistaeachefia
da Comissão Militar Central. Foiaindamais
ousado, ao incorporar seu “pe nsamento” à
própria Constituição, assim se igualandoao
legadodeMaoTsé-tung(1893-1976)eDeng.
No planointerno, enrijeceua censura
aos meios de comunicação.Implantou,
com ouso de sofisticadastecnologias, um
sistema “orwelliano” de controlepolicial
da população. Lançoucampanhas de re-
pressão aminoriasétnicas ereligiosas,no-
tadamentecontraopovo uighur, no extre-
mo Oestedo país,ao que constacomre-
cursoa encarceramentocoletivo.
Hojemaisde 70% dos americanostêm vi-
são negativada China—posturasobrea
qualTrumpbuscacapitalizarem sua cam-
panhapela reeleição, comreferênciasao
“víruschinês”e incriminaçãodo país pela
pandemia.Temtambémtido fortereper-
cussãonos EUA alegislação de segurança
nacional recentemente adotada por Pe-
quim,quenapráticapõetermoaostatusde
autonomiae liberdadedemocrática até há
poucovigenteemHongKong.
No momentoo pontocrucialdo embate
entreEUA e Chinaé ofuturoda revolucio-
nárianovatecnologiade quintageraçãoda
internet, a 5G. Os EUA,em gerallíderesnas
inovaçõescientíficas etecnológicas,fica-
ram paratrás nessesetor, ondea empresa
maiscompetentee competitiva é a chinesa
Huawei.Invocandoatémotivosdeseguran-
ça nacional,o governoamericanoestá a
exercerfortíssimapressãoparaque outros
países nãopermitama participação da
Huaweiemsuasredesde5G.
Essa campanhaestá sendoconduzida
tambémcomrelaçãoao Brasil,inclusive
como recursoa clarasameaças(“conse-
quências”, diz o embaixadoramericano). O
Brasilde hoje é particularmentevulnerável
a tais pressões,dadaa opçãoestratégica do
governoBolsonaro por um fortealinha-
mentopolíticoe ideológicocom os EUA de
Trump, que vai ao pontode colocar-nos em
posiçãode subalternidadeesubserviência
em face daquelepaís. Sintomáticadissofoi
arecente decisãodo Itamaraty de secundar
osEUAnumataqueveladoàChinanaOMC.
Asituaçãoédelicada.Enão melhoraráse
for eleitoo democrata Joe Biden,que éacer-
bo críticoda China.Talvez a únicalinhade
continuidadeentreTrumpeBidensejaoan-
tagonismo em relaçãoàChina.Esse quadro
colocao Brasilno meiodo cabode guerra
entreosdoiscontendores.Interessa-nosde-
senvolverao máximonossasrelaçõescom
os EUA,mas asalvo de cobrançasindevidas.
Ecumpretermosem menteque não ésem
razãoquenossorelacionamentocomaChi-
na é conduzidosob a égidede uma frondo-
sa edinâmicaParceriaEstratégica(lançada,
por sinal,em 1993,duranteminhagestão
comoembaixadoremPequim).
A introduçãoda 5G propiciaráao Brasil
um extraordináriosaltotecnológico, capaz
de nos permitirqueimaretapasna supera-
ção do atrasoem que estãonossaindús-
tria, nossosserviços e, em termosmaisam-
plos,nossossistemasde educaçãoe ciên-
cia. Nessascondições,éimportanteque o
governonão se deixelevarpor afinidades
ideológicas ou sucumbaa pressõesinacei-
táveis. Que sim se faça a escolhaque me-
lhor sirvaa nossos interessespolíticos,eco-
nômicos,financeirosetecnológicos.■
RobertoAbdenuré ex-embaixadornaChina,Ale-
manhae EUA e ex-secretário-geral doItamaraty
Brasil dehoje é
particularmente
vulnerável a pressões
naquestãodo5G,
pontocrucial do
embate entre Estados
Unidose China