20 |Valor|Sexta-feira,21deagostode
E
lá se vão mais de sete décadas desde
que aestudante de medicinafoi inti-
madapelocolega, cirurgião no se-
gundoano da residência,afecharo
corte no abdômendo homemque acabara de
ser operado de hérnia inguinal (na virilha).
Assustada,apr imeirareação foi a recusa. Até
então, nunca“costurara” nenhum dos doen-
tes.Vacilouporalgunssegundos.
Foi otemponecessáriopara lembrar que já
fizera um cursode corte e costurae que, em
casa com a mãe,fazia suas próprias roupas.
Concluiuquenãohaveriadesertãodiferente.
Em vez dos panos, um tecidohumano. Porta
agulhaepinçaemmãos,fezpontopor ponto,
comdelicadezaeprecisão.
Estava começandona profissãouma médica
que viria a ser conhecidaereconhecidamun-
dialmente.Comolhosatentos,blazerclaroim-
pecável, poucosenfeites,nenhumfio de cabelo
fora de lugareasmesmasmãosfirmes,agas-
troenterologistaAngelitaHabr-Gama,de 88
anos,contaesse episódioneste“À Mesacom o
Valor”, feitoremotamentepor videochamada,
comelaearepórteremsuasrespectivascasas.
“A cirurgia é um momento de concentra-
ção, de dedicação absolutas. Às vezes,só
quandotermina eu vejo que passei todoo
tempoapoiada em uma perna só. Mas, quan-
do termina, não me sintocansada. Sinto-me
relaxada”,afirma.Elacalculaterfeitoouparti-
cipadode,pelomenos,50miloperações.
Angelitaé referênciainternacionalna colo-
proctologia,que estudaas doençasdo intestino
grosso, do reto e ânus.Na docência,alcançouo
topoda carreirana Faculdadede Medicinada
USP,como professoratitular. Foiaprimeiramu-
lher residentede cirurgiado Hospitaldas Clíni-
cas (HC),ondecrioua disciplinade coloprocto-
logiaefoi a primeirachefedos departamentos
decirurgiaegastroenterologia.
Duranteaentrevista,elatemacompanhiado
marido, ocirurgiãoJoaquimJosé Gama-Rodri-
gues,e da assistenteRegina.Oprato de Angelita
é“linguinenelgranapadano”(linguineaoquei-
jo granapadano).Acirurgiãéesguiaenão se
permitegrandesextravagânciasalimentares.
Costumadizerque,depoisdeumacertaidade,a
melhormaneiradesemanteremformaéa“die-
ta da alface”. “Sabecomoéessa dieta?”, pergun-
ta, divertindo-seao relembrarde uma paciente
que,quandoquestionadasobrecomofaziapara
manteraforma,disse:“Sócomoalface”.
Masconfessaqueadoramassas,eolinguine
entreguepeloTatini—restaurantefundadona
década de 1980peloitalianoMarioTatini
(1928-2020)que hoje funciona nos Jardins,
em São Paulo —éumade suas favoritas. Uma
regaliacalórica que se permitecom tranquili-
dadedois meses depoisde ter alta do Hospital
AlemãoOswaldoCruz,ondepassou50diasin-
tubada,brigandocomacovid-19.
Quando chegouao hospital,ossintomas já
indicavam onovo coronavírus.“Os médicos
falaram comigo,enessemomentoeu tomei
consciênciade que minha infecção pelo vírus
eramuitograveequeeucorriaoriscodemor-
rer”, conta.Ficou muitoassustada? “Sabeque
encarei a possibilidade de morrer com tran-
quilidade, embora eu ache queainda não éo
momento? Gosto muitoda vida e achoque é
muitocedo.Tenhoaindamuitacoisapara fa-
zer—trabalho,amigos,colegas,família.”
Angelitapreferesempreconhecerarealida-
de. “Gostode ver avida comoela é.”Oquenão
significagostarde ver a morte,portantoo fato
de ter passadotantotempoinconscientefoi um
alívio. “Nossosmestresnos ensinamque nunca
devemostiraraesperançadopaciente,dizerque
éincurável, que vai morrer.Aesperançae avon-
tadedelutarpelavidasãoimportantíssimas.”
Eladizcrerque,comexceções,émelhornão
saberquando amortechegará. “Ao saberque
seutempodevidaéesseouaquele,muitosnão
vivemmais,mesmoestandoaqui.”Relembraa
visita que fez a um paciente,também médico.
Comentou comoaqueledomingode sol esta-
va lindo. “Ele me disse:‘Angelita, o dia está lin-
do para você. Para mim, que estouno hospital
fazendo quimioterapia, sabendo que vou
morrerdaquiapouco,nãoé’.”
Estaentrevista,emumsábadoànoiteemque
telejornaisanunciavam que maisde mil brasi-
leiroshaviammorridonaquelasúltimas24 ho-
ras devidoàcovid-19,induzAngelitaauma re-
flexão.“OBrasiltemumamedicinadealtonível.
Quemtem acessoaela tem tudo.Mas agrande
maioriada populaçãonão tem. Eu não sei se te-
riasobrevividosemoatendimentoquerecebi.”
Emborao SUS tenhasido crucialpara o aten-
dimentodos maisde 3milhõesde infectados
com o coronavírus,essaspessoastiveramque
enfrentarfilas enormes.Não forampoucasas
que morreramnessaesperapara serematendi-
das, ou correndode um hospitalpara outro, em
buscade um leito em Unidadede TerapiaInten-
siva(UTI),observaAngelita.
“Nessetempo,asdoençasvãoseagravando.
Aquele que tem acesso a um bomseguro de
saúde,abonshospitaisoumesmoaoSUS,nos
centros de ponta,recebe um atendimentode
alto padrão. Quemnão tem é muitocarente
de atendimentomédico. Nós temos uma po-
pulaçãocarentedetudo”, afirma.
À MESA COMO VALOR - ANGELITA HABR-GAMA
Referênciamundialemcoloproctologia,médicaoctogenária
abriucaminhopara mulheresnaáreae supera a covidapós 54
diasinternada.Por MonicaGugliano, para o Valor,deSãoPaulo